Notícia
Valdemar Aveiro, o comandante de homens
Tem 83 anos, nasceu em Ílhavo, terra de gente com salitre no sangue. Aos 16 anos, Valdemar Aveiro partiu para os mares da Terra Nova a bordo do Viriato, navio de pesca à linha. Era então moço de câmara. Estreou-se como capitão no Santa Joana, o primeiro arrastão português. Deixou o mar em 1988, mas continua ligado à pesca. “Tenho uma actividade que faz inveja a muita gente”, graceja.
"Ó menina, tenho uma maldição muito rara, que é pôr-me na pele dos outros." A frase sai-lhe assim, dorida e espontânea, como acontece com os homens grandes. Valdemar Aveiro tem 83 anos e é um dos capitães dos bacalhoeiros portugueses que andaram pelos mares do fim do mundo. Nasceu em Ílhavo, embarcou com 16 anos para a Terra Nova a bordo do Viriato, um navio de pesca à linha. Era então moço de câmara. Foi escalando na hierarquia de bordo e fez a sua estreia como capitão no Santa Joana, o primeiro arrastão em Portugal. Foi depois convidado para comandar o navio mais moderno de então, o Coimbra. Valdemar Aveiro correu o mundo como comandante de navios. E de homens.
Apaixonado pela História e pelos romances históricos, este capitão nascido em Ílhavo foi guardando as vivências tidas em alto-mar ao longo de dezenas de anos. As suas memórias foram passadas a livros. E são várias as obras por si escritas. Têm História e têm estórias, algumas dramáticas, outras divertidas. São sobretudo histórias muito humanas. "80 Graus Norte - Recordações da Pesca do Bacalhau", "Ecos do Grande Norte", "Histórias Desconhecidas dos Grandes Trabalhadores do Mar" e "Nómadas do Oceano" são alguns dos livros publicados pela Âncora Editora. Este ano, Valdemar Aveiro lançou "Heróis que o tempo não apaga - Um conto real de vida", editado pela Fundação Gil Eannes.
"Os meus livros têm afundamentos, têm salvamentos, têm tempestades, mas também têm histórias engraçadas passadas em terra. A menina imagine como é que um homem se sente quando, passados setenta dias de mar, vai a terra e dá com um rosto feminino. Os homens ficavam tolinhos! Nestes livros, conto histórias de amor assolapadas, mas também conto histórias de deserção e muitos outros episódios."
O livro "80 Graus Norte - Recordações da Pesca do Bacalhau" é uma delícia feita de histórias e onde se fica a conhecer parte da vida deste capitão. Nasceu em Ílhavo e o destino estava por isso traçado. "Pela mesma razão que quase toda a gente na Marinha Grande se empregava nas fábricas de vidro, em Ílhavo, assim que nasciam, as pessoas começavam a pensar em seguir as pegadas dos antepassados. Os meus pais, avós e bisavós estavam ligados ao mar", conta Valdemar Aveiro, que se tornou no primeiro oficial da família. "A gente de Ílhavo parece que tem salitre no sangue." O mar era o seu horizonte. "Há séculos que os marinheiros ilhavenses, nómadas de um deserto líquido, o atravessam em todas as direcções. Muitos perderam-se na sua imensidão, gota diluída sem qualquer valor. E, geração após geração, outros retomaram o facho e continuaram a caminhada, seguindo os mesmos trilhos sem que as suas pegadas deixassem qualquer rasto. Por isso mesmo, eu comparo os homens da minha terra a esses nómadas dos areais sem fim, porque se estes têm por pátria a sua tenda, os ílhavos têm por pátria o convés do seu navio, e ambos partilham em comum o infinito de um sonho que nunca se alcança", escreve no livro "80 Graus Norte".
"Por causa do mar, Ílhavo chegou a ser uma terra muito alegre, com muita vida e muita beleza, era uma terra muito avançada num país como Portugal. Por exemplo, as senhoras usavam todas maquilhagem quando esses produtos mal eram conhecidos no resto do país. Como os pais, maridos e noivos andavam na Marinha, uns no comércio, outros na pesca, iam à América e traziam os produtos de cosmética. Havia muitas Coco Chanel em Ílhavo, havia verdadeiras passagens de modelos ao ar livre", graceja o comandante.
Depois de ter sido aprendiz de barbeiro, aprendiz de serralheiro e servente na construção civil, Valdemar Aveiro entrou na Escola Profissional de Pesca, em Lisboa. Tinha então 15 anos. "Fiz a vida negra aos meus pais para ir estudar pesca em Lisboa. O meu irmão tinha morrido afogado num dóri e o meu pai dizia que já tinha perdido um filho, não queria perder outro, mas a minha mãe autorizou-me e eu fui tirar um curso técnico de preparação para ser moço nos navios da pesca do bacalhau. E fui mesmo!"
Aos 16 anos, embarcou para a Terra Nova a bordo de um lugre, o Viriato, um veleiro que já tinha um motor. Valdemar Aveiro recorda o dia do seu baptismo de mar, em Abril de 1951. "O Tejo mais parecia uma marina imensa, tantos eram os navios fundeados nas suas águas tranquilas", escreve no livro "80 Graus Norte". O ambiente era de festa, o rio estava engalanado, com grandes mastros embandeirados, pronto para receber a "Bênção à Frota".
O seu Viriato partiu e Valdemar ficaria seis meses e meio no mar, como moço, o posto mais baixo na hierarquia a bordo. "O moço fazia tudo, o moço era o moço - ó rapaz, vai buscar isto, ó rapaz vai buscar aquilo." Foi a bordo que os conceitos teóricos ganharam corpo e expressões como "estrafego", "linha-mãe", "estralhos" traduziam-se em coisas concretas. Já em mar, a pescaria começava com o arraiar dos dóris, "encaixados uns nos outros como barquilhos de sorvete", descreve Valdemar Aveiro. Tudo obedecia a um ritual que mais parecia uma cerimónia religiosa. Aos poucos, a gíria e os rituais dos homens do mar passaram a ser também os seus. Aos poucos, a vida dos homens do mar passou a ser também a sua.
Mais tarde, Valdemar ganhou uma bolsa de estudo, terminou o liceu e seguiu para a Escola Náutica, onde fez o curso oficial de Marinha Marcante. "Sou uma ave rara em Ílhavo. Em Lisboa, fui quase adoptado pelos Varela Cid, família de uma grande nobreza de alma. Fui orientado por eles na minha vida de estudante", sublinha o capitão de Ílhavo, que passou a dedicar-se depois à pesca de arrasto. "Quando saí da escola, já era piloto oficial náutico."
Uns anos mais tarde, já casado e com dois filhos, decide tentar libertar-se do mar. Partiu com a família para Toronto, no Canadá. Queria então estudar Medicina. "Armei-me em aventureiro e fui atrás de uma ilusão. A vida na América não era aquilo que se dizia. A experiência foi um fracasso tremendo. O único mérito que tive foi o de ter tido a coragem de voltar para trás e de ter reconhecido que tinha errado e sujeitar-me ao escárnio", conta. "Fui vivendo a minha vida. Voltei para a Empresa Pesca de Aveiro, na Gafanha da Nazaré, onde continuo a viver - sou de Ílhavo de nascimento, de coração sou gafanhão."
Voltou para o mar, aceitou a vida que tinha e a ela dedicou-se com afinco. Chegou ao topo da hierarquia a bordo. A sua estreia como capitão foi feita no Santa Joana, um arrastão construído em 1936, propriedade da Empresa de Pesca de Aveiro. Seguiram-se outras viagens e chegou o dia em que Valdemar mudou de patrão e passou a comandar o então moderno arrastão de nome Coimbra, fabricado em 1948 e pertencente à Empresa de Pesca de São Jacinto. "Corri o mundo no Coimbra. Eu e uns colegas fomos os primeiros portugueses a ir ao Norte da Sibéria à procura de bacalhau, fizemos uma pesca terrivelmente abundante. E o Coimbra também foi o primeiro de um grupo de navios que resolveram experimentar, pela primeira vez, o mar de Barents."
Valdemar Aveiro deixou o mar em Agosto de 1988, mas continua ligado à actividade da pesca, como administrador na Empresa de Pesca de São Jacinto. "Saudades do mar? Nem sei o que lhe diga, sim e não. Tenho saudades, mas não saudades doentias, gosto de recordar, não as amarguras, mas as coisas boas que passei, e tive alegrias muito grandes. Tive sempre uma apetência para lidar com estrangeirada, fossem esquimós, ou outros, gostava de me dar com toda a gente. Conheci sítios muito esconsos do mundo, conheci muita gente, sempre na pesca do bacalhau."
Apaixonado pela História e pelos romances históricos, este capitão nascido em Ílhavo foi guardando as vivências tidas em alto-mar ao longo de dezenas de anos. As suas memórias foram passadas a livros. E são várias as obras por si escritas. Têm História e têm estórias, algumas dramáticas, outras divertidas. São sobretudo histórias muito humanas. "80 Graus Norte - Recordações da Pesca do Bacalhau", "Ecos do Grande Norte", "Histórias Desconhecidas dos Grandes Trabalhadores do Mar" e "Nómadas do Oceano" são alguns dos livros publicados pela Âncora Editora. Este ano, Valdemar Aveiro lançou "Heróis que o tempo não apaga - Um conto real de vida", editado pela Fundação Gil Eannes.
O livro "80 Graus Norte - Recordações da Pesca do Bacalhau" é uma delícia feita de histórias e onde se fica a conhecer parte da vida deste capitão. Nasceu em Ílhavo e o destino estava por isso traçado. "Pela mesma razão que quase toda a gente na Marinha Grande se empregava nas fábricas de vidro, em Ílhavo, assim que nasciam, as pessoas começavam a pensar em seguir as pegadas dos antepassados. Os meus pais, avós e bisavós estavam ligados ao mar", conta Valdemar Aveiro, que se tornou no primeiro oficial da família. "A gente de Ílhavo parece que tem salitre no sangue." O mar era o seu horizonte. "Há séculos que os marinheiros ilhavenses, nómadas de um deserto líquido, o atravessam em todas as direcções. Muitos perderam-se na sua imensidão, gota diluída sem qualquer valor. E, geração após geração, outros retomaram o facho e continuaram a caminhada, seguindo os mesmos trilhos sem que as suas pegadas deixassem qualquer rasto. Por isso mesmo, eu comparo os homens da minha terra a esses nómadas dos areais sem fim, porque se estes têm por pátria a sua tenda, os ílhavos têm por pátria o convés do seu navio, e ambos partilham em comum o infinito de um sonho que nunca se alcança", escreve no livro "80 Graus Norte".
"Por causa do mar, Ílhavo chegou a ser uma terra muito alegre, com muita vida e muita beleza, era uma terra muito avançada num país como Portugal. Por exemplo, as senhoras usavam todas maquilhagem quando esses produtos mal eram conhecidos no resto do país. Como os pais, maridos e noivos andavam na Marinha, uns no comércio, outros na pesca, iam à América e traziam os produtos de cosmética. Havia muitas Coco Chanel em Ílhavo, havia verdadeiras passagens de modelos ao ar livre", graceja o comandante.
Depois de ter sido aprendiz de barbeiro, aprendiz de serralheiro e servente na construção civil, Valdemar Aveiro entrou na Escola Profissional de Pesca, em Lisboa. Tinha então 15 anos. "Fiz a vida negra aos meus pais para ir estudar pesca em Lisboa. O meu irmão tinha morrido afogado num dóri e o meu pai dizia que já tinha perdido um filho, não queria perder outro, mas a minha mãe autorizou-me e eu fui tirar um curso técnico de preparação para ser moço nos navios da pesca do bacalhau. E fui mesmo!"
Aos 16 anos, embarcou para a Terra Nova a bordo de um lugre, o Viriato, um veleiro que já tinha um motor. Valdemar Aveiro recorda o dia do seu baptismo de mar, em Abril de 1951. "O Tejo mais parecia uma marina imensa, tantos eram os navios fundeados nas suas águas tranquilas", escreve no livro "80 Graus Norte". O ambiente era de festa, o rio estava engalanado, com grandes mastros embandeirados, pronto para receber a "Bênção à Frota".
O seu Viriato partiu e Valdemar ficaria seis meses e meio no mar, como moço, o posto mais baixo na hierarquia a bordo. "O moço fazia tudo, o moço era o moço - ó rapaz, vai buscar isto, ó rapaz vai buscar aquilo." Foi a bordo que os conceitos teóricos ganharam corpo e expressões como "estrafego", "linha-mãe", "estralhos" traduziam-se em coisas concretas. Já em mar, a pescaria começava com o arraiar dos dóris, "encaixados uns nos outros como barquilhos de sorvete", descreve Valdemar Aveiro. Tudo obedecia a um ritual que mais parecia uma cerimónia religiosa. Aos poucos, a gíria e os rituais dos homens do mar passaram a ser também os seus. Aos poucos, a vida dos homens do mar passou a ser também a sua.
Mais tarde, Valdemar ganhou uma bolsa de estudo, terminou o liceu e seguiu para a Escola Náutica, onde fez o curso oficial de Marinha Marcante. "Sou uma ave rara em Ílhavo. Em Lisboa, fui quase adoptado pelos Varela Cid, família de uma grande nobreza de alma. Fui orientado por eles na minha vida de estudante", sublinha o capitão de Ílhavo, que passou a dedicar-se depois à pesca de arrasto. "Quando saí da escola, já era piloto oficial náutico."
Uns anos mais tarde, já casado e com dois filhos, decide tentar libertar-se do mar. Partiu com a família para Toronto, no Canadá. Queria então estudar Medicina. "Armei-me em aventureiro e fui atrás de uma ilusão. A vida na América não era aquilo que se dizia. A experiência foi um fracasso tremendo. O único mérito que tive foi o de ter tido a coragem de voltar para trás e de ter reconhecido que tinha errado e sujeitar-me ao escárnio", conta. "Fui vivendo a minha vida. Voltei para a Empresa Pesca de Aveiro, na Gafanha da Nazaré, onde continuo a viver - sou de Ílhavo de nascimento, de coração sou gafanhão."
Voltou para o mar, aceitou a vida que tinha e a ela dedicou-se com afinco. Chegou ao topo da hierarquia a bordo. A sua estreia como capitão foi feita no Santa Joana, um arrastão construído em 1936, propriedade da Empresa de Pesca de Aveiro. Seguiram-se outras viagens e chegou o dia em que Valdemar mudou de patrão e passou a comandar o então moderno arrastão de nome Coimbra, fabricado em 1948 e pertencente à Empresa de Pesca de São Jacinto. "Corri o mundo no Coimbra. Eu e uns colegas fomos os primeiros portugueses a ir ao Norte da Sibéria à procura de bacalhau, fizemos uma pesca terrivelmente abundante. E o Coimbra também foi o primeiro de um grupo de navios que resolveram experimentar, pela primeira vez, o mar de Barents."
Valdemar Aveiro deixou o mar em Agosto de 1988, mas continua ligado à actividade da pesca, como administrador na Empresa de Pesca de São Jacinto. "Saudades do mar? Nem sei o que lhe diga, sim e não. Tenho saudades, mas não saudades doentias, gosto de recordar, não as amarguras, mas as coisas boas que passei, e tive alegrias muito grandes. Tive sempre uma apetência para lidar com estrangeirada, fossem esquimós, ou outros, gostava de me dar com toda a gente. Conheci sítios muito esconsos do mundo, conheci muita gente, sempre na pesca do bacalhau."