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Leonor Freitas: Não havia espaço para errar, tinha os olhos dos homens postos em mim

Leonilde Freitas era a bisavó. Germana Freitas a avó. Joana é a filha. Leonor, já chamada de “Ferreirinha dos tempos modernos”, é a senhora da Casa Ermelinda Freitas, um negócio de vinho gerido por mulheres há quatro gerações.

Bruno Simão
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Leonor é a senhora da Casa Ermelinda Freitas, gerida por mulheres há quatro gerações. Leonilde Freitas era a bisavó. Germana Freitas a avó. Joana é a filha e segue-se na sucessão familiar desta empresa nascida em Fernando Pó, Palmela, no início do século XX e que hoje produz 14 milhões de litros de vinho por ano. É uma das maiores produtoras do sector vitivinícola daquela região metida entre o Tejo e o Sado. Leonor Freitas gere um jardim de vinhas, como gosta de chamar aos 500 hectares de terra que foi acumulando ao longo dos tempos. Começou com 60. Lançou novas castas e marcas. Ganhou prémios e medalhas. Foi condecorada pelo Presidente da República. Prepara agora a sucessão.


"Eu sou a Leonor Freitas, conhecida por Ermelinda. Ermelinda era a minha mãe". Leonilde era a bisavó. Germana, a avó. Joana é a filha. Leonor Freitas, apelidada de Ferreirinha dos tempos modernos pela Revista de Vinhos, é alma e corpo de um negócio que tem sido encabeçado por mulheres de Fernando Pó, na região de Palmela, numa quinta que já foi milheiral e seara de trigo e hoje vende 14 milhões de litros de vinho por ano. É um manto verde de 500 hectares, com 29 castas, que fazem da Casa Ermelinda Freitas um dos maiores produtores do sector vitivinícola daquela terra plana e húmida metida entre o Tejo e o Sado.

Leonor acaba de chegar do Brasil, um dos mercados de exportação da Casa Ermelinda Freitas, e fala para uma plateia de alunos dos programas PGL - Programa de Gestão e Liderança e AESE Summer School daquela Escola de Direcção e Negócios. "Vejam esta varanda, espreitem, isto é um jardim de vinhas. É lindo!", convida a anfitriã, que gosta de receber estudantes em casa e passar-lhes o seu "amor pela terra". Um amor que a fez tomar as rédeas de uma empresa iniciada em 1920 pela bisavó Leonilde e que, em parte empurradas pela viuvez, as suas descendentes femininas agarraram. O que nem sempre foi fácil.

"Há 80 anos, Fernando Pó era um local muito isolado, havia uma grande assimetria entre o mundo rural e mundo urbano, e o 'papel' do homem e da mulher era algo muito acentuado. A minha avó não sabia ler nem escrever, mas tinha um irmão que era médico. E isso diz tudo". A avó Germana é a grande referência da neta Leonor. "Eu sou muito parecida com ela. Ela era uma mulher com muita força, ficou viúva com quatro filhos, tomou conta de mim. Eu andava sempre atrás dela. Passou-me a imagem de uma mulher capaz. De uma mulher que enfrentava tudo. Ela enfrentava os trabalhadores homens naquela altura e isso marcou-me".

Filha única, nascida ali na quinta em 1952, Leonor fazia do campo o seu palco de diversão. "Eu estava sozinha e sabe quais eram as minhas brincadeiras? Semear batatas e semear feijões. Era o que eu via fazer, e depois regava e aquilo crescia. Brincava às hortas. No fundo, acho que gostava muito do campo e fui aprendendo muita coisa sem me aperceber", conta.


Aos 10 anos, Leonor foi estudar para Setúbal. Licenciou-se no Instituto Superior de Serviço Social e trabalhou no Ministério da Saúde. Depois, o pai morreu. "Morreu cedo, aos 59 anos, e toda a gente pensava que eu ia vender a quinta, mas eu ficava arrepiada com só a ideia. "Vou vender aquilo a que a família tem tanto amor? Não". Decidiu ajudar a mãe Ermelinda e pegou naquele que era, então, um negócio de vinho a granel, sem marca própria, transportado por camiões inox para outras quintas. Leonor recorda o camião do Engenheiro Leão, com as suas linhas de engarrafamento ambulantes. E lá ia a família toda. Para a linha. A dona da casa começou, também, a ir às reuniões da associação de viticultores da região e era muitas vezes a única mulher ali presente. "Tinha os olhos dos homens postos sobre mim, não tinha espaço para errar".

Na altura, herdou 60 hectares de vinhas de duas castas: Castelão e Fernão Pires. Foi comprando terrenos. No final dos anos noventa, construiu uma nova adega, adquiriu uma linha de engarrafamento e, com o apoio do enólogo Jaime Quendera, lançou o tinto "Terras de Pó", o primeiro vinho produzido e engarrafado na Casa Ermelinda Freitas. Novas castas foram surgindo, como Trincadeira, Touriga Nacional, Aragonês, Syrah, Alicante Bouschet, entre outras. Novas marcas foram lançadas: Ermelinda, Quinta da Mimosa, Dom Campos, Vinha do Rosário, M.J. Freitas e Dom Freitas. E mais. Marcas que valeram à empresa uma facturação de 17 milhões de euros em 2015, mais 2,7% que no ano anterior.

Leonor e a sua casa amealham prémios e medalhas. Em 2008, o vinho Casa Ermelinda Freitas Syrah 2005 foi distinguido com o troféu de melhor vinho tinto do mundo no concurso "Vinalies Internationales", em Paris. Um ano depois, a "Ferreirinha dos tempos modernos" foi agraciada, a 10 de Junho, pelo então Presidente da República, Cavaco Silva, com a comenda de Ordem do Mérito Agrícola, Comercial e Industrial na Classe de Mérito Agrícola. Agora, a preocupação de Leonor Freitas é preparar a geração seguinte para continuar o negócio das mulheres de Fernando Pó. O filho, João, estudou informática e toma conta das tecnologias da propriedade. A filha Joana é licenciada em gestão, já tem nas mãos os mercados asiáticos e promete ser a próxima "dona" da Casa. Será a representante da quinta geração de mulheres daquela quinta de Fernando Pó.


Plantar uma vinha e vê-la amadurecer é como ver crescer um filho

Já lhe chamaram "Ferreirinha dos tempos modernos". Identifica-se?

Não sei se vou ser capaz de ser uma Ferreirinha, mas gostava muito! Sinto-me lisonjeada, mas com uma grande responsabilidade perante a Casa Ermelinda Freitas e perante a região. Foi com amor e com uma grande luta que a Ferreirinha (Antónia Adelaide Ferreira) conseguiu vencer. Acho que o meu segredo também é o grande amor que tenho por aquilo que faço. O mundo rural, do qual eu saí e ao qual, inicialmente, eu não queria voltar, é hoje o meu encanto, é hoje o meu reencontro. 

 

A Leonor é uma mulher que sucede a várias mulheres. É uma responsabilidade acrescida?

Nas partilhas de família, o primeiro nome que encontro é o da bisavó, Leonilde Freitas, que não conheci. A minha avó (Germana) sim, conheci-a bem, ficou viúva com 38 anos, nunca casou. Era uma mulher com muita força, criou os quatro filhos, tinha um rebanho de ovelhas, fazia queijos. Era uma força da natureza, não tinha fins-de-semana, não tinha férias, nada. A gente hoje cansa-se muito, ela nunca podia cansar-se. Eu andava sempre atrás dela e, de facto, passou-me a imagem de uma mulher capaz. De uma mulher que enfrentava. Que enfrentava os trabalhadores homens naquela altura. Ainda hoje tenho na memória muitas imagens dela. Dela a impor-se. Dela a exigir. Morreu aos 92 anos e esteve sempre relativamente lúcida. Eu acho que sou muito parecida com ela, é a minha grande referência. Até o meu pai crescer, foi ela que tomou conta de tudo. O meu pai (Manuel João de Freitas) também era uma pessoa com visão. E até foi muito criticado por deixar sair daqui uma menina com 10 anos. Ainda por cima, para estudar. Com tantas vinhas e tanto trabalho no campo, a menina foi estudar para Setúbal. 

 

Mas voltou ao campo. E fez de tudo. No início, nem tinha máquina de enchimentos. E foram várias as peripécias, não?

Sim, no início, deslocava-se até aqui o camião do Engenheiro Leão, da zona do Porto, que tinha linhas de engarrafamento ambulantes. Íamos todos para a linha, até a minha filha Joana, que era muito pequena. Depois, ficava cá uma maquinetazinha, a partir da qual rotulávamos as garrafas, uma a uma. Lembro-me de "ganhar" uma tendinite no ombro de rotular tanta garrafa. E fiz de tudo, sim, estive na linha de engarrafamento, andei com o empilhador. Na altura, ainda vendíamos a granel, só a partir de 2002 é que deixei de vender vinho a granel. As pessoas a quem costumava vender não precisavam de comprar vinho nesse ano e eu estremeci. Mas esse abanão durou dois dias e, logo seguir, procurei alternativas, criei mais marcas e arranjei o "bag in box", que tem sido um sucesso. Tratou-se mesmo de aproveitar um momento que me parecia muito difícil e que se tornou uma oportunidade.

 

Foi com a sua gestão que a Casa avançou com a criação de marcas próprias. Em 1997, lança o "Terras do Pó" tinto, primeiro vinho produzido e engarrafado aqui.

Sim, é quando eu construo as marcas que se começa a ouvir falar nos vinhos da Casa Ermelinda Freitas, por isso eu fiquei Ermelinda. O rosto era meu, o projecto era em nome da minha mãe.

cotacao Eu fiz tudo isto durante a crise. A crise, a crise, a crise, e eu a crescer, a crise, a crise, e eu a vender. 

Nas primeiras reuniões, a Leonor era a única mulher. Como foi?

Eu não percebia nada e, então, queria aprender, queria ver como era. Comecei a ir às reuniões da associação de viticultores da região de Palmela e, em algumas delas, eu era a única mulher. Lembro-me de uma reunião em que o senhor que estava a moderar dizia: minha senhora e meus senhores. De cada vez que eu ouvia ‘minha senhora’, apetecia enfiar-me pela cadeira. Tinha de me mentalizar que não seria pelo facto de ser mulher que não iria dar continuidade ao negócio. Mas tinha também de ter muito cuidado, não tinha espaço para errar, isso não. Tinha os olhos dos homens postos em mim, nos meus comportamentos.

 

Hoje, existem várias mulheres neste mundo. E muitas premiadas.

Hoje já existem muitas mulheres, apesar de uma maioria de homens. Naquela altura, era muito diferente. E, há 50 anos, o mundo rural ficava muito longe de Lisboa. Quando o meu pai morreu – ele morreu cedo, tinha 59 anos –, toda a gente estava à espera que eu vendesse o negócio, mas eu não queria, arrepiava-me só com a ideia. Digo-lhe mais. O meu pai morreu em Lisboa e, nessa noite, eu vim logo para aqui. Disse ao meu marido – vai buscar os miúdos, vai buscar roupa, que eu vou para casa dos meus pais. Vim para aqui e daqui não saí mais. Aparecia muita gente a querer comprar. E eu pensava: vender? E o que é que eu faço ao dinheiro? E vou vender aquilo a que a família tem tanto amor? Não. Vou tentar levar o negócio para a frente. Foi uma resolução muito rápida, solitária. Nos grandes momentos, nas grandes decisões, estamos sós. Mas devo dizer que o meu marido tem sido um grande companheiro, esteve sempre ao meu lado, a ajudar-me, com os filhos. E quando eu chegava a casa e dizia: "ai, que já devo ter feito asneira", a frase dele era esta: "Eu não seria capaz de fazer melhor, Leonor. Acalma-te". E isto é importante. Ele não é um homem de negócios, é engenheiro mecânico, mas, desde que se reformou, trabalha aqui na contabilidade. Os engenheiros gostam muito de números.

 

E qual o papel da sua mãe?

A minha mãe (Ermelinda Freitas) teria tido um desgosto enorme se eu tivesse vendido o negócio, mas ela, sozinha, não seria capaz de ficar com tudo. Ela nunca tinha assinado um cheque, nunca tinha entrado num banco, era sempre o meu pai a fazê-lo. Na altura, "ficava mal" a uma mulher aparecer a negociar. Ela estava por trás e tinha uma perspicácia enorme para o negócio. Não dava a cara, apesar de influenciar muito o meu pai. Mas quando eu comecei a tentar mudar algumas coisas aqui dentro, ela sofreu um pouco. Não tinha confiança em mim: "ó filha, o que é que tu sabes?". Por exemplo, quando comecei a plantar a primeira casta, a Touriga, as pessoas diziam-lhe: "a sua filha anda a estragar dinheiro". Depois, por fim, já acreditava em mim, mas entretanto adoeceu, com alzheimer, e não se apercebeu da mudança, do crescimento final. No fim, já dizia: "ai filha, quisemos tanto que estudasses para teres uma vida melhor e tu tens uma vida pior que a nossa. Tu trabalhas muito...". Ela tinha este sentimento. Aconteceram coisas muito giras na reaproximação com a minha mãe. É que eu tinha saído daqui com dez anos, só vinha aos fins-de-semana ou nas férias e, a dada altura, quase que não nos conhecíamos e havia grandes choques entre nós. Quando eu vinha cá, ela punha-me a fazer comida e a limpar os móveis, e depois vinha com o dedo para ver se ainda havia pó. Aquilo era uma desorientação total para mim. Aquele dedo a ver se ainda havia pó… (risos). Ela obrigava-me a coser, a fazer renda, malha, aprendi de tudo e hoje sei que isso não me fez mal nenhum. Mas, assim que pude, com 16 anos, comecei a arranjar trabalho nas férias para não ir a casa. Trabalhei numa fábrica de tomate, tomei conta de colónias de férias, era o que arranjasse...

 

E, depois, estudou no Instituto Superior de Serviço Social e trabalhou nessa área.

Fui trabalhar para o Ministério da Saúde. Primeiro, fiz um estágio em Lisboa, depois vim para Setúbal quando casei. Fiz várias coisas, sobretudo na área de educação para a saúde, dei palestras sobre prevenção do alcoolismo, acompanhei crianças. E gostava muito. Prefiro, de longe, aquilo que faço hoje, mas eu era feliz na minha profissão.

cotacao Nada compensa mais do que o criar. Não troco isto por nada. É que isto tem vida. 

Mas, aos 15 anos, quis ser regente agrícola. "Isso é um curso para homens", disse-lhe o seu pai.

Exactamente. Aos 15 anos, eu quis ir para o curso de regente agrícola, e o meu pai disse – não, filha, não é um curso para meninas. É que, em miúda, eu vivia aqui sozinha, não tinha irmãos, e sabe quais eram minhas brincadeiras? Era semear batatas e feijões. Depois regava tudo e aquilo crescia. E andava com as ovelhas e com os borregos. Era aquilo que eu via fazer. Eu brincava às hortas. No fundo, eu gostava muito do campo e fui aprendendo sem me aperceber. Os meus pais achavam piada e até mostravam a minha horta quando alguém vinha de visita.

 

Em conversa com os alunos da AESE, a Leonor Freitas contou que, por diversas vezes, lhe foi "ditada" a insolvência.

Desde o início. E eu fiz tudo isto durante a crise. A crise, a crise, a crise, e eu a crescer, a crise, a crise, e eu a vender. As partilhas da minha bisavó deram origem a quatro adegas, uma minha e outras de três primos. Eu queria fazer uma adega nova e precisava de uma estrutura para receber pessoas. Até aí, fazia-se tudo na casa da minha mãe. As reuniões eram na sala de jantar, as provas de vinho eram na cozinha, o escritório era no "hall" de entrada. A minha mãe, coitada, andava louca com as nossas desarrumações. Como eu não tinha dinheiro para grandes obras, fiz tudo por administração directa. Chamei um pedreiro daqui, um carpinteiro de acolá, sabia o preço de cada azulejo, comprava lotes que estavam a acabar para ficarem mais baratos. Consegui fazer a obra, por metade do preço e com pessoas da daqui. Depois, fui comprando terrenos.

 

Até chegar aos 500 hectares. Começou com 60.

Comecei a comprar aos primos. Aliás, isto começou por amor. Uma prima a quem as coisas correram mal veio ter comigo e eu comprei aquilo que era da avó. E fui comprando mais. Depois comprei de fora, mas tudo na região e encostado às minhas vinhas. Neste momento, temos cerca de 500 hectares, estando a produzir os 440.

 

O facto de achar que não percebia nada do negócio fez com que se rodeasse de pessoas que sabiam, nomeadamente do enólogo Jaime Quendera. 

Sim. Eu tinha cá um enólogo da idade do meu pai, disse-lhe que queria fazer coisas diferentes, ele não aceitou muito bem, hoje não me fala, tenho pena, foi uma pessoa muito importante. Acreditei neste jovem, Jaime Quendera. Ele é daqui, mas nós conhecíamo-nos muito mal. Encontrámo-nos numa feira em Bordéus, e tudo aquilo que ele dizia fazia sentido para mim. Convidei-o para trabalhar comigo. Ele também tem muito amor por este projecto. Depois, pouco a pouco, fomos alargando a equipa. Neste momento, trabalham 49 pessoas na adega (no campo, o trabalho é sazonal), muitas são da família. É que isto aqui é um lugarejo, quem não é primo, é tio. E nós damos prioridade às pessoas da terra. Eu sou uma rural como estas pessoas, preciso delas, é aqui que eu tenho de arranjar postos de trabalho.

 

O que é ser uma rural?

É ter uma ligação à terra muito grande. É uma ligação única. Plantar uma vinha e vê-la amadurecer é como ver crescer um filho. É uma coisa espectacular que não tem nada que ver com mais nada que se faça. É que isto tem vida. E todos os anos são diferentes, até mesmo por causa das condições climatéricas. Nada compensa mais do que o criar. Não troco isto por nada. Por vezes, fazem-me propostas de compra e eu digo: não há valor que pague isto. E depois também há sempre aquelas pessoas que dizem: "para quê? Os teus filhos não vão querer isto".

 

Querem?

Felizmente, querem. Tanto a minha filha Joana (formada em gestão) como o meu filho. Só que ele, informático, está mais ligado a essa área. Tenho a sorte de eles serem muito diferentes, um não quer protagonismo, só quer ajudar, então não lutam os dois pelo mesmo poder. Mas se me perguntar qual a minha grande preocupação, respondo-lhe que é preparar a geração seguinte.

cotacao Uma garrafa de vinho é muito mais que uma garrafa de vinho. É a caixa, vidro, a rolha, os rótulos... O sector do vinho mexe muito com a economia. 

E como está a fazer isso?

Responsabilizando-os, dando-lhes autonomia e tentando ir-me afastando, o que é difícil. Mas, claro, quando se é uma figura forte, e eu sei que sou, é tudo mais difícil porque, sem querer, acabo por bloqueá-los. Eles andam o dia inteiro – mãe, mãe, mãe. Por isso, sempre que posso, afasto-me. Tenho consciência que é aquilo que devo fazer. Portanto, estou fazendo sempre que é possível. Devagarinho. Não tenciono parar e ainda tenho muitos projectos, muitos objectivos, mas quero muito que eles tomem decisões. Estou a delegar os mercados externos à minha filha Joana. Neste momento, eu estou com Brasil, Angola e México. São mais fáceis para mim por causa da língua. A minha filha ficou com mercados como China e Japão, e, aí, eu não me meto.

 

São mercados mais complicados, é preciso "namorar" muito e muitos anos.

É. Eles fidelizam-se, depois, às famílias. No Japão, é muito assim. Não podemos desistir. Não podemos desistir. Nunca. E em lado algum. Por exemplo, fui três vezes seguidas ao Brasil sem vender uma garrafa. Mas não desisti até que, hoje, o Brasil é para nós um mercado razoável.

 

Ainda que o Brasil e Angola estejam a sofrer uma grande quebra.

Cheguei agora do Brasil, e até venho animada. Com Angola, parei. De resto, continuamos. A exportação – para Europa, Estados Unidos, Brasil, Colômbia, mercados asiáticos – representa 40% das nossas vendas e tenderá a ter um peso maior. Essa é a nossa luta. Não tem sido fácil.

 

Tem que ver com a imagem de Portugal?

Essa é a primeira razão. Portugal ainda não atingiu aquela imagem que França tem e que é: tudo o que vem de França é bom, mesmo que não seja. Portugal ainda não é assim, mas está no bom caminho. Precisamos de divulgar uma boa imagem dos vinhos porque bons vinhos já temos. E quem tem dimensão já consegue competir com Argentinas e com Chiles.

 

Mas é pelo preço médio que se deve competir? Portugal está associado a vinhos baratos e isso pode ser um problema, ou não?

Neste momento, associa-se Portugal a vinhos baratos, e nós, para já, não conseguimos inverter essa imagem. Então, temos de conseguir fazer bons vinhos baratos para depois apresentar os outros, mais caros, e as pessoas acreditarem que são bons. Devemos ter diversas gamas, diversos preços, diversas castas. Temos de ir ao encontro dos clientes e, se eles não conhecem as castas portuguesas mas conhecem os Merlot e os Cabernet, nós temos de ter os Merlot e os Cabernet. E depois de provarem um Cabernet nosso e de perceberem que é muito bom, então podemos dar-lhes a provar a Touriga portuguesa, que é tão boa.

 

Como caracteriza o vosso vinho? Terá um perfil dito mais contemporâneo?

Nós mantermos a tradição, modernizando-a. Não abdicámos totalmente do que era tradicional, temos vinhos das castas daqui, fazemos vinhos tradicionais, mas fomos modernizando e, lá para fora, adaptamos os vinhos ao gosto do mercado – os americanos adoram Cabernet. No Brasil e na China, gostam de vinhos mais doces. Temos de os fazer. O vinho bom é aquele que se vende. Temos de ir ao encontro do gosto do cliente e, depois, adaptamos os vinhos para começarem a gostar dos nossos. Tem havido um bom trabalho dentro do sector do vinho. Se calhar, é dos sectores que melhor trabalho tem feito lá fora. Os viticultores andam todos de mala feita. E quantos mais formos, e quanto melhor formos, melhor. Eu, sozinha, o que é que eu sou? Nós, lá fora, estamos unidos. As pessoas já perceberam que têm de se unir. A mentalidade começa a mudar. Até porque o sector do vinho mexe muito com a economia. Uma garrafa de vinho é muito mais que uma garrafa de vinho. É a caixa de papel, o vidro, a rolha, os rótulos. E os transportadores. E os distribuidores. E, como a indústria agro-alimentar incorpora muito factor produtivo manual, é muito importante na riqueza que cria em termos de emprego. 

cotacao Se me perguntar qual a minha grande preocupação, respondo-lhe que é preparar a geração seguinte.

Diz que o trabalho na terra é muito importante para a economia mas que não há noção disso.

Nós temos sido grandes colaboradores no combate ao desemprego. As fábricas em Setúbal fecharam e eu admiti imensa gente no campo. Tinha falta de pessoal, agora não tenho. Mas não sei se os nossos governantes têm esta noção. Não sei se têm noção do papel que a agricultura tem tido na criação de postos de trabalho. Penso que hoje existe outra consciência, eu fui condecorada pelo Presidente da República Cavaco Silva em 2009 e foi uma surpresa enorme. Tinha a ideia de que as pessoas que recebiam a condecoração eram muito intelectuais, e, então, disse: – Senhor Presidente, quero que esta condecoração seja partilhada pelo mundo rural. Estamos no caminho certo, mas ainda há muito a fazer.

 

Fala na necessidade de voltar a dar prestígio ao trabalho da terra. Dizia que as empresas rurais são sempre consideradas umas coitadinhas. Ainda é assim? 

Já está bem melhor. E há aquela ideia dos subsídios…, eu nunca fiz nada à espera do subsídio. Claro, quando há ajudas, candidato-me, e quando elas vêm, são bem-vindas, mas não faço ou deixo de fazer as coisas só por causa do subsídio, o que eu quero é fazer. Mas vou às escolas rurais e não sinto que aquelas crianças tenham orgulho do pai tractorista ou do pai que sabe podar. Para elas, o importante é sempre a cidade. Havia a ideia de que quem trabalhava no campo era um ignorante, era aquele que não sabia, era aquele que não tinha escolaridade, era aquele que não sabia escrever. Ainda é um pouco assim. Tenho muitos técnico-profissionais na adega, no campo, não tenho. Eu tenho pouca gente nova. E não é por ganharem menos, é porque ainda existe uma "mentalidade dos serviços". Isto tem de mudar e vai mudando. Agora, já temos engenheiros agrónomos a vir para o campo. Mas foi difícil, queriam estar em gabinetes.

 

Quais são agora os seus grandes objectivos?

Agora tenho um grande objectivo, que é trazer Lisboa e os turistas até aqui. A nossa adega está preparada para isso, com visitas, provas e possibilidade de refeições. Quanto a dormidas, há coisas tão boas à volta, basta fazermos parcerias, basta colaborar com outros sectores. E também gosto muito do lado pedagógico, sou eu que recebo aqui as escolas. E outras coisas hão-de vir.
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