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Espanha com rei sem roque

A monarquia parlamentarista espanhola está coxa. Tem rei, tem Parlamento e deputados eleitos, mas depois de duas eleições em meio ano continua sem novo primeiro-ministro e sem governo com capacidade legislativa. A falta de acordos mantém Espanha num impasse. No horizonte, adensa-se a ameaça de novas eleições.

Andrea Comas/Reuters
09 de Setembro de 2016 às 12:00
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A segunda parte da expressão "sem rei nem roque" encaixa que nem uma luva, e de forma literal, à situação política que se vive em Espanha. País que permanece há mais de oito longos meses sem um governo em plenitude de funções. Tem "rei", mas não tem "roque", expressão que no xadrez alude às torres que protegem o rei. O mesmo é dizer que não tem primeiro-ministro, e em Espanha só há governo com iniciativa legislativa depois de encontrado alguém para o chefiar.

Quando em Junho de 2014 o já então primeiro-ministro, Mariano Rajoy, anunciou a decisão do rei Juan Carlos I de abdicar do trono e abrir o processo sucessório, a imprensa antecipava "uma nova era". Essa nova era confirmou-se, porém não nos moldes que os jornais previam. É que há dois anos poucos imaginavam que o ainda príncipe Felipe teria de lidar com a maior crise política espanhola desde a falhada tentativa de golpe de Estado levada a cabo pelo coronel Tejero, em 1981.

Juan Carlos foi um dos principais artífices da pacífica transição democrática espanhola nos anos 1970, ficando gravada na pedra a decisão de abdicar dos poderes executivos que detinha em favor da democracia constitucional. Já Felipe VI assumiu os destinos da coroa logo em 19 de Junho de 2014, tendo como objectivo limpar a imagem de uma casa real envolvida em escândalos de abusos de poder e esquemas de corrupção. Chegou ao trono para promover a transição da coroa para a tal "nova era".

No entanto, não obstante ter alcançado os pretendidos índices de popularidade positivos, Felipe VI vê-se a braços com a transição do bipartidarismo para algo que ainda ninguém consegue identificar com total precisão. O predomínio bipolar de PSOE e PP foi substituído, nas eleições de 20 de Dezembro do ano passado (20-D), e reiterado nas eleições de 26 de Junho (26-J), pelos parlamentos mais fragmentados da história democrática de Espanha. Podemos e Cidadãos assumiram papel de relevo, desencadeando a substituição do tradicional duopólio por uma espécie de tetrapartidarismo incapaz, até ver, de gerar entendimentos.

Mas se "agora a democracia está consolidada, resta saber se este novo equilíbrio político é sustentável no médio prazo", adverte o politólogo espanhol Pablo Simón constatando a incapacidade de os partidos espanhóis chegarem a acordos. E Felipe VI pouco poderá fazer para promover a estabilidade do actual quadro partidário, até porque "não é sobre o rei que recaem as expectativas de flexibilização do regime", nota Marcos Farias Ferreira, que atribui ao monarca espanhol "um papel meramente formal". Pese embora este professor de Relações Internacionais do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) sustente que Felipe VI se remete a esse papel secundário por "estratégia". Porque assim "preserva o papel da coroa", acrescenta Pablo Simón, professor de Ciência Política da Universidade Carlos III, de Madrid.

No entender de Farias Ferreira foi também "o surgimento de outros partidos com força no Parlamento que retirou iniciativa política ao rei", mas Pablo Simón defende que Felipe VI "aprendeu com o pai que quanto menos envolvimento político a casa real tiver, mais útil pode ser a coroa".

Tudo na mesma... ou quase

Fracassadas as duas tentativas de investidura de Rajoy, primeiro-ministro ainda em exercício, Felipe VI reuniu-se esta segunda-feira com Ana Pastor, presidente do Parlamento, que anunciaria no mesmo dia a decisão do monarca de "não iniciar, por enquanto", uma nova ronda de consultas aos partidos com assento parlamentar. Constatando a inexistência de sinais tendentes à obtenção de uma solução governativa, o rei apelou ao "diálogo" entre os partidos, optando por esperar até que alguém lhe diga que tem os apoios necessários ou, pelo menos, que esteja perto disso. Ou seja, depois de duas eleições inconclusivas, Espanha está, uma vez mais, de regresso à casa de partida.

Pablo Simón atribui a incapacidade de superar o impasse que impede a formação de um governo à "transformação muito rápida do quadro partidário" espanhol, que "provocou a actual paralisia". Imobilismo que consagrou dias inéditos em Espanha. Depois de, em Março, Pedro Sánchez, secretário-geral socialista, se ter tornado no primeiro líder a falhar a investidura, Rajoy tornou-se agora no primeiro vencedor de eleições gerais a não conseguir ser investido como chefe de governo. Antes, ainda em Janeiro, o presidente do PP foi o primeiro político a recusar a incumbência atribuída pelo rei de se apresentar à sessão de investidura, argumentando não dispor dos apoios necessários.

Apesar de ninguém querer repetir as eleições, o impasse mantém-se.

Eleições no País Basco podem mudar o tabuleiro político, mas o desgaste é crescente.


A qualquer altura Felipe VI pode decidir retomar a auscultação às forças políticas, podendo, ou não, convidar algum líder - presumivelmente Sánchez, ou novamente Rajoy - a assumir a responsabilidade de ir a uma nova sessão de investidura. Processos que podem repetir-se até terminarem os 60 dias estipulados pela Constituição para a formação de governo e que começaram a contar depois de falhada a primeira votação de Rajoy, em 31 de Agosto último. Assim, ou há uma solução até ao final do presente mês de Setembro, ou em 1 de Outubro o rei é obrigado a dissolver as cortes e a agendar novas eleições, que, a acontecerem, decorrerão em Dezembro, as terceiras no espaço de um ano.

Apesar de o relógio estar a contar, na opinião de Farias Ferreira e de Pablo Simón, só haverá novidades depois das eleições regionais no País Basco e na Galiza, agendadas para o próximo dia 25 de Setembro. O resultado das mesmas permitirá clarificar posições. Um mau resultado dos socialistas poderá levar a uma mudança de posição do Comité Federal do partido e à viabilização da investidura de Rajoy através da abstenção. O que significaria o afastamento de Sánchez que "sabe que se os socialistas se abstiverem é o seu fim", salienta o politólogo Simón. Até lá continuarão a esgrimir-se argumentos, com PSOE e PP a acusarem-se mutuamente da quererem provocar novas eleições. Mas a verdade é que "ninguém quer eleições", afiança o professor do ISCSP. Neste jogo cruzado de passa-culpas, Rajoy puxa dos galões para destacar o forte crescimento económico e a recuperação do emprego, avisando que repetir eleições seria "uma vergonha" e que Espanha pagaria um "preço".

Desconhece-se o real "montante" desse preço, mas sabe-se que o Governo ainda em funções não teria condições para aprovar o Orçamento de 2017, nem para enviar para Bruxelas o plano com as medidas de contenção com que Madrid se comprometeu para se livrar do processo sancionatório por défice excessivo (5,1% do PIB em 2015).

Certo é que a cada dia que passa aumenta o desgaste e cresce a probabilidade de novas eleições.


Cenário Novas eleições

Nesta altura, a hipótese mais provável passa pela repetição de eleições. Mas sem garantias de que um novo acto eleitoral desbloqueará a situação, as eleições bascas e galegas podem mudar tudo.

A realização de novas eleições, as terceiras num ano, afirma-se como o cenário mais provável. O bloqueio institucional que perdura há mais de oito meses dificilmente será superado sem uma mudança de posição do PSOE, que mantém a rejeição a qualquer solução governativa protagonizada pelo PP e por Mariano Rajoy. E a menos que as eleições regionais de 25 de Setembro (no País Basco e na Galiza) impliquem o afastamento de Pedro Sánchez da liderança socialista, ou levem o Comité Federal do PSOE a decidir-se pela abstenção, Rajoy só renovará o mandato de primeiro-ministro com o apoio de forças soberanistas, hipótese para já rejeitada pelo Cidadãos. Mas os dados agora disponíveis apontam para nova ida às urnas.


Cenário Governo PP

Com 170 votos favoráveis (e 180 contra) nas duas tentativas de investidura, Rajoy ficou a apenas seis assentos, ou 11 abstenções, de ser eleito primeiro-ministro. O que leva Rajoy a ainda acredita ser possível evitar novas eleições.

Ampla coligação

Na sequência do impasse que se seguiu às eleições de 20 de Dezembro, Rajoy definiu como principal opção uma coligação entre os partidos considerados moderados, as forças do chamado "arco constitucional" (PP-PSOE-Cidadãos). E mesmo depois de novo veto socialista, o ainda primeiro-ministro espanhol insiste nesta solução, que é também defendida pelo Cidadãos e por alguns sectores do PSOE. Este continua a ser o cenário mais forte para garantir o objectivo de evitar novo acto eleitoral. A chave continua nas mãos do PSOE.

PP junta-se a soberanistas

A apenas seis apoios da investidura - 137 do PP, 32 do Cidadãos e a parlamentar da Coligação Canária - Rajoy pode esperar pelas eleições de 25 de Setembro no País Basco para então tentar assegurar o voto favorável dos cinco deputados dos nacionalistas bascos (PNV). Se o conseguir, Rajoy fica a um voto favorável da investidura, que poderia ser assegurado por Pedro Quevedo, o deputado independente eleito nas listas do PSOE nas Canárias. O PSOE viabilizaria um governo de Rajoy sem ser penalizado junto do eleitorado socialista. Mas esta solução poderia ser uma caixa de Pandora para os independentismos, basco e catalão.


Cenário Governo PSOE

Depois das eleições de 20 de Dezembro, Pedro Sánchez falhou as duas tentativas de ser investido primeiro-ministro. Contudo o líder socialista ainda acalenta a esperança de evitar eleições e chegar a chefe de governo.

Acordo à esquerda e à direita

Pedro Sánchez já tentou reunir o apoio do Podemos e do Cidadãos, mas - já depois de ter estabelecido um acordo de legislatura com o Cidadãos - viu esta solução ser rejeitada, em Março, com o partido liderado por Pablo Iglesias a votar contra a investidura do líder socialista. Agora, logo depois de fracassada a investidura de Rajoy, o secretário-geral do PSOE insistiu na concretização deste cenário, apelando a entendimentos entre as "forças progressistas". Todavia, Podemos e Cidadãos continuam a rejeitar-se mutuamente.

Governo das esquerdas

Um acordo entre PSOE e Podemos é a alternativa de governo defendida por Pablo Iglesias, que voltou, na investidura falhada de Rajoy, a apelar a Sánchez para decidir de "uma vez por todas" se prefere governar com os populares ou com o Podemos. Juntos, socialistas e Unidos Podemos (aliança que junta o Podemos aos pró-comunistas da Esquerda Unida) não vão além de 156 deputados, distantes 20 assentos da maioria absoluta. Pelo que para se concretizar este cenário seria necessário recolher o apoio de forças independentistas. Ex-líderes do PSOE, Comité Federal e barões regionais do partido opõem-se a esta possibilidade.


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