Notícia
Crónica: O início do Brexit
Estava em Londres no dia em que os britânicos escolheram sair da União Europeia. A campanha no centro da capital inglesa era quase imperceptível. E indiciava que o "Remain" poderia ganhar. Mas os avisos iam sendo feitos: Londres não é o Reino Unido. E não foi.
"É um dia normal, como os outros." Foi assim que no dia 24 de Junho, um vendedor de flores perto de uma estação de metro resumia o que estava a acontecer no seu país. Esperava vender algumas das flores, que ia arranjando, à medida que me afastava de qualquer conversa mais profunda. Não queria falar com jornalistas. Não queria falar do Brexit que os seus concidadãos tinham decidido há menos de 24 horas. E que acabou por surpreender tudo e todos.
Apesar de o vendedor considerar que aquele era mais um dia, nada de normal havia naquele 24 de Junho de 2016. No dia anterior, os britânicos foram chamados a decidir, em referendo, o que queriam para o futuro do seu país: permanecer ("Remain") ou sair ("Leave") da União Europeia. E decidiram. Contra chefes de Estado. Contra chefes de Governo. Contra chefes de empresas. Contra financeiros. Contra empresários. Contra reguladores. Decidiram sair.
Em Londres, não era o desfecho previsível. Em Londres, não era o desfecho pretendido. Londres votou, maioritariamente, pelo "Remain", e isso percebia-se. Apesar de no centro da cidade, com turistas aos molhos, por estes dias não ser visível que o país estava em vias de uma decisão dessa importância. Habituada a campanhas portuguesas, espera-se "outdoors", bandeiras, comícios, autocolantes, gritos. Nada disso. É Londres!
Mas quem queria saber a opinião da rainha Isabel II sobre o referendo não teve. Só por interpostas pessoas foram surgindo notícias que apontavam num único sentido, a rainha estaria a favor do Brexit. Nada ficou escrito preto no branco. Como muita coisa neste referendo.
Os dias deveriam ser tudo menos normais. Onde estavam os apoiantes de um lado e de outro?
Imigrantes há muitos
Nas conversas lá se vai percebendo. Um passeio pelo bairro designado Little Portugal deixa a marca da imigração, o principal alvo da campanha. Em particular por quem defendia o Brexit. Os imigrantes estavam a sobrecarregar os serviços públicos, a "comer" empregos, orçamentos... e a União Europeia a impor regras sem olhar a quem.
No Little Portugal há imigrantes. São os nossos emigrantes. Muitos. Porta sim, porta sim há uma bandeira portuguesa. Estamos, sem dúvida, em Stockwell. Mas há amargura. Mesmo para com muitos outros portugueses chegados a Londres à procura de subsídios. Quem por lá anda há mais anos, tem pena e diz que a imagem dos portugueses caiu um pouco. Mas também há quem questione. Se os britânicos querem menos imigrantes, quem vai fazer o trabalho que eles não fazem? Uma conversa a que nos habituámos também em Portugal. Quem trabalha na agricultura? Quem trabalha nos cafés? Quem trabalha como mulher-a-dias? A resposta é uma: os imigrantes. É uma resposta recorrente, mas também há quem lembre - são imigrantes, claro - que há estrangeiros em profissões qualificadas. Quantos enfermeiros portugueses há em Londres? A questão vai surgindo no meio de grupos de imigrantes.
As conversas da migração têm de estar presentes nestes dias. Não somos racistas. Não somos racistas. Vão dizendo os ingleses sempre que a pergunta surge. Mas é de casos de racismo que os jornais vão noticiando. E um espanhol vai resumindo o que se sente: sinto-me, agora, mais estrangeiro em Londres. As palavras vão surgindo. Os sentimentos revelados. Mas eu não vi episódios de racismo. Não vi pedidos para voltarem para as suas terras. Mas vi desilusão.
Desilusão dos imigrantes que se sentiam em casa, mas que agora se questionam sobre o seu papel. Sobre o país que os acolheu. Mas há também muita desilusão dos britânicos. Ao Negócios vão dizendo que não querem acreditar que o país é racista. O quão racista se tornou. A culpa foi de uma campanha extremada, destrutiva. Só havia dois lados. Só podia haver dois lados. E muitas vezes eram dois lados da mesma moeda.
Isso sentia-se nas ruas de Londres. Ou se era a favor ou contra o Brexit. As sondagens davam 10% de indecisos. Não vi tanta indecisão. E também não vi, como muitos parecem ter visto, alienação. Os londrinos sabiam o que estava em causa. Sabiam da importância do referendo. Sabiam e queriam ir votar. E foram. 33 milhões votaram, o que significa uma afluência de perto de 72%. Portugal já não conhece números desta ordem há muitos, muitos anos. É preciso recuarmos às eleições pós-25 de Abril para vermos em Portugal afluências dessa ordem.
Não se ver bandeiras. Não se ver "outdoors", não se ver campanha activa não significava (e não significou) desinteresse ou desligamento. Mas é estranho. Dizem-me que é normal. Por aqui não há grandes euforias.
Neste microcosmo de Londres, o "Remain" está à frente. Torna-se até difícil no centro encontrar quem confesse ser do "Leave". Um cenário que se alterou uns dias depois. Após o resultado, mais "leavers" apareceram nas ruas. É um pouco como há uns anos se dizia que acontecia em Portugal com os sportinguistas. Quase não existiam, até começarem a ganhar...
Um discurso extremado
"Este debate causou uma histeria no país." As palavras demonstram o que os londrinos sentem. Sem que se vejam muitas acções de campanha - as que se vêem são perto do metro e de manhã cedo ou à tarde, à entrada e saída dos empregos, pedindo para votar num lado ou no outro - as televisões vão mostrando os rostos do Brexit e do "Remain". E mostram discursos inflamados a acusarem-se, mutuamente, de mentirem.
E é isso que nos vão dizendo nas ruas. Os "leavers" salientavam as mentiras dos "remainers", estes enfatizavam o que diziam ser as mentiras dos apoiantes do Brexit. "Esta campanha foi lamentável", diziam de um lado e de outro. E isso mesmo acabaram por reconhecer os dois lados nos discursos pós-referendo. E com requintes... O próprio Nigel Farage, líder do UKIP, o partido eurocéptico que ganhou as europeias, e que foi a terceira força mais votada nas legislativas, assumiu que um dos "claims" da campanha do Brexit - que os 350 milhões de libras que o Reino Unido entrega semanalmente à União Europeia podiam ser canalizados para o serviço nacional de saúde (NHS) - podia não ser exactamente assim. Mas para os britânicos promessas são promessas. Aliás, foi com base numa - de Cameron na campanha para as eleições de 2015 - que o referendo acabou por acontecer.
Os "leavers" também sabiam apontar mentiras do lado contrário. Diziam que o impacto na economia não ia ser tão mau como Cameron e os seus "acompanhantes" na campanha diziam. Osborne era, também, um alvo a abater.
"Mentirosos", diziam eles. Estranho como uma campanha quase invisível conseguiu ser tão divisionista. Tão extremada. E que abriu tantas chagas.
"Referendum day"
Nigel Farage e Boris Johnson reclamavam que dia 23 de Junho, o dia do referendo, era o Dia da Independência. E nem por acaso, nas ruas de Londres os autocarros de dois andares, os típicos vermelhinhos, anunciavam um novo filme: "O Dia da Independência", o segundo da saga.
O dia começou cedo. As urnas abriam às sete da manhã. No Reino Unido não há dia de reflexão. Tão-pouco se proíbe que no próprio dia da votação haja apelos ao voto. A campanha estava na rua. Mais uma vez de forma tímida. Distribuía autocolantes e folhetos. Mas o dia estava de chuva. Muita chuva. A noite tinha sido de temporal. Já se iam fazendo contas. A chuva ia afastar algumas pessoas das urnas. Também as sondagens "de rua" iam falhando. Em Londres, no centro, mais uma vez se viam mais apelos ao "Remain". Mas se até aí, apostava as fichas numa vitória do "Remain", houve qualquer coisa naquele dia que acabou por me fazer desconfiar que qualquer resultado era possível. O que se desvaneceu nas primeiras horas da noite. Mesmo uma sondagem publicada já depois das 22 horas (altura em que as urnas encerraram), que revelava uma eventual vitória do "Remain", não podia ser tida em conta. Mas foi tida, pelo menos por Nigel Farage. O líder do UKIP foi o primeiro a fazer uma declaração nessa noite. E deixou a mensagem de que estava perdida a sua luta, a favor do Brexit.
Londres, e o Reino Unido, deitou-se com o "Remain", levantou-se com o "Leave" vencedor. Os britânicos tinham escolhido sair da União Europeia. Mas com "nuances". A Irlanda do Norte, a Escócia e Londres votaram para ficar, mas também vão sair.
E tudo isso levanta novos problemas. Os ingleses parecem acreditar que o Reino não vai continuar manter-se Unido. A campanha tinha dividido o país. O resultado do referendo promete dividi-lo mais.
Nós gostamos de vocês
O dia começou com o Brexit. Mas muitos londrinos nem queriam acreditar. Chorei, disseram muitos. Os estrangeiros estavam apreensivos e tristes. E muitos londrinos também. Outros preferiam descansar quem dizia vir de fora. Portugal? "Também foi por vocês que fizemos isto", acabaram alguns por dizer.
Os britânicos votaram pela reforma da União Europeia, não gostam dos tecnocratas de Bruxelas que mandam. Mas não dizem que o Reino Unido até tem estatuto privilegiado. No dia seguinte, aquele que Nigel Farage dizia que era o da Independência, a chuva tinha parado. Umas quantas pessoas optaram por comemorar a vitória do "Leave" em frente do número 10 de Downing Street. Pediram a resignação de Cameron e tiveram-na. Mas aguardava-se pela reacção de outros conservadores: Boris Johnson e Michael Gove, que tinham sido os rostos do Brexit. A meio da manhã chegavam ao palanque. Sem grandes sorrisos. Sem grandes comemorações. Tinham vencido. Mas quem assistia ia vendo rostos de apreensão. O país tinha-se dividido no referendo. O partido também. Mas o que aí vinha era o desconhecido. Foi-se pondo água na fervura na urgência de invocar o artigo 50 para iniciar o processo de saída. Já ninguém parecia ter pressa no Brexit.
Boris Johnson falou primeiro. Michael Gove foi o último a intervir na conferência. Já estavam na ordem correspondente. Apesar de Boris Johnson ser falado como um dos principais candidatos ao lugar de Cameron, acabou por ser Gove, uns dias mais tarde, a assumir primeiro a sua candidatura. Naquela conferência, afinal, o futuro parecia já estar traçado. Boris Johnson, que era catalogado nas ruas como o Trump do Reino Unido, mostrou um ar encurralado. Michael Gove parecia mais com atitude de Estado. "Não podemos voltar as costas à Europa. (...) Podemos encontrar a nossa voz no mundo." Uma conferência sem direito a perguntas. O dia ia ser longo. Mas as semanas seguintes, os meses seguintes, os anos seguintes, também se adivinham longos.
O Partido Conservador já estava dividido. Mas nesta "guerra" o Partido Trabalhista também não ficou imune. A liderança de Jeremy Corbyn começou a ser contestada, com críticas ao resultado do referendo. Um resultado pelo qual Corbyn nem se bateu grandemente. Mas sobrou para ele. E levou a ala mais socialista do Labour para a rua. Já não se falava do "Remain" ou "Leave", mas tudo passou a estar ligado a um "in" ou a um "out". Na rua pedia-se: "Corbyn in, tories [conservadores] out." Mais uma brecha aberta.
O país mostrava as suas feridas. Noticiavam-se ataques a imigrantes. Não vi. Mas vi um país a votar no Brexit com os argumentos baralhados, sem o conseguirem explicar bem. O referendo foi feito. E está decidido. Agora, há que viver com a decisão. E avançar para a concretizar. Pelo caminho, também a selecção inglesa ficou pelo caminho no Euro. Os títulos eram óbvios. Novo Brexit! E com nova demissão. Pelo menos por um dia, as conversas mudaram um pouco. Mas por pouco tempo. As dúvidas persistem. O país está na dúvida. Como escrevia o Daily Mail: "So what the hell happens now?" [O que se vai passar agora]. Para já, é só mais um dia como os outros.
Apesar de o vendedor considerar que aquele era mais um dia, nada de normal havia naquele 24 de Junho de 2016. No dia anterior, os britânicos foram chamados a decidir, em referendo, o que queriam para o futuro do seu país: permanecer ("Remain") ou sair ("Leave") da União Europeia. E decidiram. Contra chefes de Estado. Contra chefes de Governo. Contra chefes de empresas. Contra financeiros. Contra empresários. Contra reguladores. Decidiram sair.
Os turistas passeavam pelos principais ícones da cidade indiferentes ao referendo. A cidade continuava a proporcionar-lhe as habituais atracções indiferente ao referendo. E até o render da guarda real, com toda a pompa e circunstância, junto do Palácio Buckingham, se fez como habitualmente. O povo queria ver o espectáculo. E viu-o.
Mas quem queria saber a opinião da rainha Isabel II sobre o referendo não teve. Só por interpostas pessoas foram surgindo notícias que apontavam num único sentido, a rainha estaria a favor do Brexit. Nada ficou escrito preto no branco. Como muita coisa neste referendo.
Os dias deveriam ser tudo menos normais. Onde estavam os apoiantes de um lado e de outro?
Imigrantes há muitos
Nas conversas lá se vai percebendo. Um passeio pelo bairro designado Little Portugal deixa a marca da imigração, o principal alvo da campanha. Em particular por quem defendia o Brexit. Os imigrantes estavam a sobrecarregar os serviços públicos, a "comer" empregos, orçamentos... e a União Europeia a impor regras sem olhar a quem.
No Little Portugal há imigrantes. São os nossos emigrantes. Muitos. Porta sim, porta sim há uma bandeira portuguesa. Estamos, sem dúvida, em Stockwell. Mas há amargura. Mesmo para com muitos outros portugueses chegados a Londres à procura de subsídios. Quem por lá anda há mais anos, tem pena e diz que a imagem dos portugueses caiu um pouco. Mas também há quem questione. Se os britânicos querem menos imigrantes, quem vai fazer o trabalho que eles não fazem? Uma conversa a que nos habituámos também em Portugal. Quem trabalha na agricultura? Quem trabalha nos cafés? Quem trabalha como mulher-a-dias? A resposta é uma: os imigrantes. É uma resposta recorrente, mas também há quem lembre - são imigrantes, claro - que há estrangeiros em profissões qualificadas. Quantos enfermeiros portugueses há em Londres? A questão vai surgindo no meio de grupos de imigrantes.
As conversas da migração têm de estar presentes nestes dias. Não somos racistas. Não somos racistas. Vão dizendo os ingleses sempre que a pergunta surge. Mas é de casos de racismo que os jornais vão noticiando. E um espanhol vai resumindo o que se sente: sinto-me, agora, mais estrangeiro em Londres. As palavras vão surgindo. Os sentimentos revelados. Mas eu não vi episódios de racismo. Não vi pedidos para voltarem para as suas terras. Mas vi desilusão.
Desilusão dos imigrantes que se sentiam em casa, mas que agora se questionam sobre o seu papel. Sobre o país que os acolheu. Mas há também muita desilusão dos britânicos. Ao Negócios vão dizendo que não querem acreditar que o país é racista. O quão racista se tornou. A culpa foi de uma campanha extremada, destrutiva. Só havia dois lados. Só podia haver dois lados. E muitas vezes eram dois lados da mesma moeda.
Isso sentia-se nas ruas de Londres. Ou se era a favor ou contra o Brexit. As sondagens davam 10% de indecisos. Não vi tanta indecisão. E também não vi, como muitos parecem ter visto, alienação. Os londrinos sabiam o que estava em causa. Sabiam da importância do referendo. Sabiam e queriam ir votar. E foram. 33 milhões votaram, o que significa uma afluência de perto de 72%. Portugal já não conhece números desta ordem há muitos, muitos anos. É preciso recuarmos às eleições pós-25 de Abril para vermos em Portugal afluências dessa ordem.
Não se ver bandeiras. Não se ver "outdoors", não se ver campanha activa não significava (e não significou) desinteresse ou desligamento. Mas é estranho. Dizem-me que é normal. Por aqui não há grandes euforias.
Neste microcosmo de Londres, o "Remain" está à frente. Torna-se até difícil no centro encontrar quem confesse ser do "Leave". Um cenário que se alterou uns dias depois. Após o resultado, mais "leavers" apareceram nas ruas. É um pouco como há uns anos se dizia que acontecia em Portugal com os sportinguistas. Quase não existiam, até começarem a ganhar...
Um discurso extremado
"Este debate causou uma histeria no país." As palavras demonstram o que os londrinos sentem. Sem que se vejam muitas acções de campanha - as que se vêem são perto do metro e de manhã cedo ou à tarde, à entrada e saída dos empregos, pedindo para votar num lado ou no outro - as televisões vão mostrando os rostos do Brexit e do "Remain". E mostram discursos inflamados a acusarem-se, mutuamente, de mentirem.
E é isso que nos vão dizendo nas ruas. Os "leavers" salientavam as mentiras dos "remainers", estes enfatizavam o que diziam ser as mentiras dos apoiantes do Brexit. "Esta campanha foi lamentável", diziam de um lado e de outro. E isso mesmo acabaram por reconhecer os dois lados nos discursos pós-referendo. E com requintes... O próprio Nigel Farage, líder do UKIP, o partido eurocéptico que ganhou as europeias, e que foi a terceira força mais votada nas legislativas, assumiu que um dos "claims" da campanha do Brexit - que os 350 milhões de libras que o Reino Unido entrega semanalmente à União Europeia podiam ser canalizados para o serviço nacional de saúde (NHS) - podia não ser exactamente assim. Mas para os britânicos promessas são promessas. Aliás, foi com base numa - de Cameron na campanha para as eleições de 2015 - que o referendo acabou por acontecer.
Os "leavers" também sabiam apontar mentiras do lado contrário. Diziam que o impacto na economia não ia ser tão mau como Cameron e os seus "acompanhantes" na campanha diziam. Osborne era, também, um alvo a abater.
"Mentirosos", diziam eles. Estranho como uma campanha quase invisível conseguiu ser tão divisionista. Tão extremada. E que abriu tantas chagas.
"Referendum day"
Nigel Farage e Boris Johnson reclamavam que dia 23 de Junho, o dia do referendo, era o Dia da Independência. E nem por acaso, nas ruas de Londres os autocarros de dois andares, os típicos vermelhinhos, anunciavam um novo filme: "O Dia da Independência", o segundo da saga.
O dia começou cedo. As urnas abriam às sete da manhã. No Reino Unido não há dia de reflexão. Tão-pouco se proíbe que no próprio dia da votação haja apelos ao voto. A campanha estava na rua. Mais uma vez de forma tímida. Distribuía autocolantes e folhetos. Mas o dia estava de chuva. Muita chuva. A noite tinha sido de temporal. Já se iam fazendo contas. A chuva ia afastar algumas pessoas das urnas. Também as sondagens "de rua" iam falhando. Em Londres, no centro, mais uma vez se viam mais apelos ao "Remain". Mas se até aí, apostava as fichas numa vitória do "Remain", houve qualquer coisa naquele dia que acabou por me fazer desconfiar que qualquer resultado era possível. O que se desvaneceu nas primeiras horas da noite. Mesmo uma sondagem publicada já depois das 22 horas (altura em que as urnas encerraram), que revelava uma eventual vitória do "Remain", não podia ser tida em conta. Mas foi tida, pelo menos por Nigel Farage. O líder do UKIP foi o primeiro a fazer uma declaração nessa noite. E deixou a mensagem de que estava perdida a sua luta, a favor do Brexit.
Londres, e o Reino Unido, deitou-se com o "Remain", levantou-se com o "Leave" vencedor. Os britânicos tinham escolhido sair da União Europeia. Mas com "nuances". A Irlanda do Norte, a Escócia e Londres votaram para ficar, mas também vão sair.
E tudo isso levanta novos problemas. Os ingleses parecem acreditar que o Reino não vai continuar manter-se Unido. A campanha tinha dividido o país. O resultado do referendo promete dividi-lo mais.
Nós gostamos de vocês
O dia começou com o Brexit. Mas muitos londrinos nem queriam acreditar. Chorei, disseram muitos. Os estrangeiros estavam apreensivos e tristes. E muitos londrinos também. Outros preferiam descansar quem dizia vir de fora. Portugal? "Também foi por vocês que fizemos isto", acabaram alguns por dizer.
Os britânicos votaram pela reforma da União Europeia, não gostam dos tecnocratas de Bruxelas que mandam. Mas não dizem que o Reino Unido até tem estatuto privilegiado. No dia seguinte, aquele que Nigel Farage dizia que era o da Independência, a chuva tinha parado. Umas quantas pessoas optaram por comemorar a vitória do "Leave" em frente do número 10 de Downing Street. Pediram a resignação de Cameron e tiveram-na. Mas aguardava-se pela reacção de outros conservadores: Boris Johnson e Michael Gove, que tinham sido os rostos do Brexit. A meio da manhã chegavam ao palanque. Sem grandes sorrisos. Sem grandes comemorações. Tinham vencido. Mas quem assistia ia vendo rostos de apreensão. O país tinha-se dividido no referendo. O partido também. Mas o que aí vinha era o desconhecido. Foi-se pondo água na fervura na urgência de invocar o artigo 50 para iniciar o processo de saída. Já ninguém parecia ter pressa no Brexit.
Boris Johnson falou primeiro. Michael Gove foi o último a intervir na conferência. Já estavam na ordem correspondente. Apesar de Boris Johnson ser falado como um dos principais candidatos ao lugar de Cameron, acabou por ser Gove, uns dias mais tarde, a assumir primeiro a sua candidatura. Naquela conferência, afinal, o futuro parecia já estar traçado. Boris Johnson, que era catalogado nas ruas como o Trump do Reino Unido, mostrou um ar encurralado. Michael Gove parecia mais com atitude de Estado. "Não podemos voltar as costas à Europa. (...) Podemos encontrar a nossa voz no mundo." Uma conferência sem direito a perguntas. O dia ia ser longo. Mas as semanas seguintes, os meses seguintes, os anos seguintes, também se adivinham longos.
O Partido Conservador já estava dividido. Mas nesta "guerra" o Partido Trabalhista também não ficou imune. A liderança de Jeremy Corbyn começou a ser contestada, com críticas ao resultado do referendo. Um resultado pelo qual Corbyn nem se bateu grandemente. Mas sobrou para ele. E levou a ala mais socialista do Labour para a rua. Já não se falava do "Remain" ou "Leave", mas tudo passou a estar ligado a um "in" ou a um "out". Na rua pedia-se: "Corbyn in, tories [conservadores] out." Mais uma brecha aberta.
O país mostrava as suas feridas. Noticiavam-se ataques a imigrantes. Não vi. Mas vi um país a votar no Brexit com os argumentos baralhados, sem o conseguirem explicar bem. O referendo foi feito. E está decidido. Agora, há que viver com a decisão. E avançar para a concretizar. Pelo caminho, também a selecção inglesa ficou pelo caminho no Euro. Os títulos eram óbvios. Novo Brexit! E com nova demissão. Pelo menos por um dia, as conversas mudaram um pouco. Mas por pouco tempo. As dúvidas persistem. O país está na dúvida. Como escrevia o Daily Mail: "So what the hell happens now?" [O que se vai passar agora]. Para já, é só mais um dia como os outros.