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Por que devemos debater reestruturações

Querer pagar dívida a todo o custo ou confiar na resolução do problema apenas por crescimento pode ser o bilhete para uma década desperdiçada. Debater abertamente o problema da dívida é menos masoquista do que silenciá-lo.

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A última semana ficou marcada por uma acesa polémica sobre um manifesto apresentado por mais de sete dezenas de portugueses que apoia a reestruturação da dívida pública. O debate vem tarde e só peca por não enquadrar a questão no contexto mais amplo do endividamento total, privado e público. É que o desafio é de tal ordem que o que me espanta não é que 70 pessoas tenham colocado a questão na ordem do dia, mas que muitos mais se recusem discutir abertamente o problema na sua essência.

Comecemos por alguns dados:

• A dívida pública portuguesa atingiu os 130% do PIB no final de 2013, o que coloca Portugal como o sexto país do mundo com maior peso de dívida (à frente estão Japão, Grécia, Líbano, Jamaica e Itália). A média da Zona Euro está nos 90%, já superior aos máximos registados no pós-Segunda Grande Guerra;

• A factura de juros da actual dívida ronda os 4,5% do PIB ao ano. Para cumprir o compromisso europeu mais básico, Portugal terá de caminhar para um excedente orçamental antes de juros na casa dos 4% do PIB nos próximos anos, e de 3% na década seguinte, valores nunca registados no Portugal democrático e difíceis de encontrar na Europa nas últimas décadas. Acresce que o envelhecimento populacional pressiona cada vez mais as contas e as perspectivas de crescimento não são animadoras;

• Todos, mesmo a troika, concordam que para a dívida pública ser sustentável, será central que a economia cresça próximo dos 4% em termos nominais (2% em termos reais), num momento em que decorre todo um debate internacional sobre a possibilidade de termos entrado numa fase de baixo crescimento permanente nas economias avançadas;

• Na frente privada, as empresas e as famílias devem cerca de 280% do PIB, do qual 165% está por conta das empresas, que ocupam o quarto lugar, no ranking da Zona Euro. Para manter o "stock" de dívida privada constante, seria necessário que o sector privado crescesse quase três vezes mais do que a taxa de juro, num contexto de bancos com prejuízos e custos de financiamento especialmente elevados;

• Finalmente, entre 1970 e 2008, mais de 80% dos casos de incumprimento em países de rendimento médio aconteceram com níveis de dívida externa (privada e pública) inferiores a 80% do PIB. Entre 1970 e 2000, a média da dívida externa nas economias avançadas foi de 55% do PIB. No final do ano passado, Portugal devia ao exterior mais de 250% do PIB – quase cinco vezes mais.

Perante estes valores, como digo, é muito mais estranho que se recuse debater o problema, do que existirem 70 pessoas que considerem que a situação é insustentável. Aliás, o risco de algum tipo de reestruturação é uma percepção generalizada entre especialistas em endividamento. E é mesmo muito fácil encontrar economistas da área financeira que as recomendam.

Kenneth Rogoff (ex-economista-chefe do FMI) e Carmen Reinhart defendem a necessidade de reestruturar dívida pública e privada em Portugal (e idealmente em vários países da Zona Euro) desde cedo na crise. Os economistas do Bruegel, um influente "think-tank" em Bruxelas, defenderam apenas há semanas uma extensão de maturidades para a dívida pública portuguesa ou uma redução de juros. E reconhecidos especialistas europeus em banca como, Charles Wyplosz, vêm-no fazendo há muito tempo.

Um tipo de críticas ao "manifesto dos 70" aponta o momento em que foi apresentado: não é bom porque queremos regressar aos mercados. Mas vamos lá a ver: não há bons momentos para uma reestruturação de dívida. É uma experiência má para todos. Mas se for para ser feita, então o melhor é que aconteça o quanto antes porque acelera a recuperação (o seu principal objectivo) e porque elimina desde já a incerteza sobre a sua inevitabilidade (o que, julgo, os mercados agradecerão). O debate é por isso muito bem-vindo à sociedade civil.

Um segundo tipo de argumentos ataca a qualidade e radicalidade das propostas. Mas também aí não há razão. As soluções apresentadas são relativamente banais no contexto europeu. A Grécia prepara-se para mais uma extensão de maturidades daqui a uns meses; o Mecanismo Europeu de Estabilidade pode emprestar a juros mais baixos (basta financiar-se a curto prazo e emprestar a longo, como faz no casos dos empréstimos a Espanha); e a mutualização da dívida acima de 60% do PIB está a ser estudada ou é defendida por alguns dos grupos de reflexão mais conceituados sobre o tema, desde peritos nomeados por Durão Barroso (na foto), ao Conselho dos Cinco Sábios Alemães (!), passando por Danik Rodrik, Jeromin Zettelmeyer, Beatrice di Mauro, Philip Lane ou Mitu Gulati.

A reacção quase epidérmica do Governo não se percebe. Transformar a sociedade civil em inimigo em vez de aproveitar os seus contributos e os pretextos que ela lhe dá, se não agora, no futuro, é desperdiçar capital de negociação no quadro político europeu e perder a oportunidade para uma reflexão justificada sobre um dos maiores desafios que o País enfrenta.

Jornalista
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