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Rui Peres Jorge - Jornalista rpjorge@negocios.pt 04 de Outubro de 2016 às 15:49

As virtudes e os pecados de um ano de geringonça

Com quase um ano no terreno, a geringonça conseguiu mais do que os críticos lhes destinavam, mas menos do que Portugal precisa.

A criação inédita de um governo de coligação à esquerda em Portugal apoiado numa agenda concreta de políticas é de louvar. Ninguém sabe como vai acabar a experiência, mas sabemos que a geringonça aumentou o leque de possibilidades de representação, e isso é positivo em vários planos. Um dos principais é que daí decorre que a história do "não há alternativa" que dominou o discurso europeu e serviu parte da elite nacional levou um rombo.

PS, Bloco, e PCP têm o mérito de terem criado uma alternativa, e Portugal sai bem na fotografia internacional ao virar à esquerda sem sobressaltos de maior, nem no plano financeiro, nem no plano político. Importa agora debater a qualidade dessa alternativa. E aqui, a procissão ainda vai no adro.

Ao contrário do que muitos dos críticos do Governo apontam, a prioridade à devolução de rendimentos e à redução do IRS em vez do IRC, a subida de impostos sobre combustíveis e tabaco, e a defesa de objectivos de consolidação orçamental menos ambiciosos do que no passado são boas notícias para Portugal e para a Europa. Respondem a preferências dos eleitores de esquerda, e fazem sentido no plano económico: resistem às políticas deflacionárias promovidas pela troika que em larga medida falharam, e procuram um maior equilíbrio na utilização das várias alavancas orçamentais.
 
Mas abrir o cordão à bolsa para salários, IRS e pensões ao mesmo tempo que se tenta reduzir o défice tem consequências perigosas: o corte de despesas com bens e serviços está a prejudicar o funcionamento de serviços públicos tão essenciais como os hospitais; as admissões no Estado estão praticamente congeladas prejudicando a recuperação do funcionamento da máquina do Estado (avaliação e promoções nem vê-las); e pelo caminho, o investimento público está cair a pique, penalizando a economia e empresas públicas.

A devolução de rendimentos não deve continuar a ser o alfa e o ómega da geringonça. Na triangulação de prioridades falta agora uma ideia clara para o futuro. O debate pré-orçamental é disso um sintoma. Aumentos de pensões e de salário mínimo voltam ao topo da agenda quando, na verdade, não deveriam lá estar – os pensionistas foram em termos relativos menos sacrificados pela crise, e o valor do salário mínimo já aumentou em menos de dois anos quase 10%.

O que Portugal precisa é uma agenda de reformas, calendarizada, quantificada e construída para ser avaliada ao longo do tempo, centrada na sustentabilidade da segurança social e do Estado social que é o mais poderoso instrumento contra a enorme desigualdade no país; numa aposta nas qualificações e da gestão do Estado; num reforço de regulação que no país das cunhas garanta igualdade no acesso a recursos públicos e privados; no enfoque no combate ao desemprego jovem e à precariedade, e na aceleração da reestruturação da dívida pública e privada.

O governo queixa-se de um problema de percepção que desvaloriza as suas vitórias (controlo do défice e criação de emprego, a resolução rápida da CGD e Banif, e anulação das multas de Bruxelas, por exemplo). Tem alguma razão. Isso resolve-se contratando especialistas internacionais em comunicação. Mas não há estratégia de comunicação que resista a uma economia altamente endividada sem crescimento.

Com quase um ano no terreno, a geringonça conseguiu mais do que os críticos lhes destinavam, mas menos do que Portugal precisa.


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