Opinião
Irredutíveis gauleses
Será sempre um «case study» a forma como a França transformou a previsivelmente pacífica ratificação do Tratado Constitucional Europeu num verdadeiro quebra-cabeças - para eles próprios e para a Europa. Desde o início do ano, as sondagens deram por três v
Desde o início do ano, as sondagens deram por três vezes indicações contraditórias: o sim esteve à frente até Março e no início de Maio, enquanto o não prevaleceu em Abril e a partir de meados de Maio. Sinal claro da indecisão que reinou no eleitorado até ao último minuto.
A crescente adesão dos franceses à rejeição do tratado, contra a corrente dos grandes partidos de poder, já foi multiplamente glosada. Voto de contestação ao governo, ao mau estado da economia e ao crescimento do desemprego. Voto de protesto contra o «ultra-liberalismo» que em sua opinião sopra de Bruxelas (e para o qual nosso compatriota Barroso também contribuiu) e à globalização que põem em questão os «direitos adquiridos» do Estado social. Uma espécie de cartão amarelo à Europa pela sua incapacidade em proteger os seus.
Não terá sido por falta de esclarecimento que os franceses tomaram as suas decisões, apesar de, previsivelmente, poucos terem lido os 400 artigos do Tratado que o Governo lhes fez chegar pela caixa do correio. Mas nas últimas semanas até os livros mais vendidos (cinco do «top ten») eram sobre o tratado.
Não espantam portanto as elevadas taxas de participação nesta consulta. O mesmo não se pode dizer quanto ao veredicto. Não que não fosse esperado. O que espanta são os motivos pois as reservas dos cidadãos franceses podem ser imputadas ao seu Governo nacional, até a algumas opções europeias, mas dificilmente ao Tratado Constitucional, elaborado por uma Convenção presidida pelo seu compatriota Valerie Giscard d’Estaing, que tem por principal objectivo a simplificação do processo de decisão e gestão da União após o alargamento e o reforço político da Europa, com a nova figura do presidente eleito por mandatos de 2,5 anos, pondo fim às presidências rotativas.
Quando todos os problemas se esperavam no referendo no Reino Unido, que Tony Blair prudentemente atirou para 2006, eis que tudo se complica mais cedo e pela voz dos irredutíveis gauleses, até agora insuspeitos de euro-cepticismo. O verdadeiro problema é que a «malaise» francesa dá sinais de alastrar. Por este andar, pode até acontecer que já não haja tratado para referendar quando chegar a vez dos britânicos. E até dos portugueses.
Por maiores que sejam os equívocos nas cabeças dos eleitores franceses, o seu descontentamento tem de ser devidamente interpretado pelas lideranças nacionais que têm impulsionado o projecto europeu.
A União Europeia não acaba com o fim do Tratado, por muito que isso custe a quem defende as suas vantagens. Mas abre caminho a tempos necessariamente difíceis e nos quais nada pode ser dado como garantido. Tentando ser optimista pode ser o tempo para reinventar a Europa. Qualquer que ela seja.