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Dívidas soberanas e credores abutres

Tal como acontece com as pessoas, corporações e outras empresas privadas que dependem dos processos de falência para reduzirem um excessivo encargo da dívida, os países por vezes também precisam de uma redução ou reestruturação ordenada da dívida.

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Mas a saga da actual luta legal da Argentina com os credores inflexíveis mostra que o sistema internacional para a reestruturação ordenada da dívida soberana talvez tenha deixado de funcionar.

 

As pessoas, as empresas ou os governos poderão acabar por se ver a braços com demasiada dívida devido à má sorte, más decisões ou uma combinação de ambas. Se você tem um empréstimo à habitação mas perde o emprego, é uma questão de azar. Se a sua dívida se torna insustentável porque pediu demasiado crédito para financiar umas férias prolongadas ou para comprar electrodomésticos caros, então a culpa é do seu mau comportamento. O mesmo se aplica às empresas: algumas têm azar e os seus planos de negócio fracassam, ao passo que outras se endividam demasiado para remunerarem excessivamente os seus gestores medíocres.

 

A má sorte e o mau comportamento (políticas) podem conduzir também a insustentáveis encargos da dívida para os governos. Se os termos comerciais (o preço das suas exportações) de um país se deterioram e uma forte recessão persiste durante bastante tempo, a base de receitas desse governo poderá encolher e o seu encargo da dívida poderá tornar-se excessivo. No entanto, um peso insustentável da dívida poderá resultar também do endividamento no sentido de gastar demasiado, da incapacidade para cobrar impostos suficientes e de outras políticas que minam o potencial de crescimento da economia.

 

Quando o peso da dívida de uma pessoa, empresa ou governo é demasiado elevado, os sistemas legais têm de providenciar formas ordenadas de reduzir esse encargo para um nível mais sustentável (mais próximo do rendimento potencial do devedor). Se for demasiado fácil entrar em incumprimento nos pagamentos e reduzir o encargo da dívida de alguém, teremos como resultado o risco moral, porque os devedores acabam por se sentir incentivados a terem maus comportamentos. Mas se for demasiado difícil reestruturar e reduzir as dívidas quando a má sorte conduz a um encargo insustentável, o resultado é mau tanto para o devedor como para o seu credor, que ficará em melhor situação se lhe for paga uma percentagem menor da dívida do que se o devedor incumprir totalmente os pagamentos.

 

Encontrar o equilíbrio certo não é fácil. Os regimes formais de falência legal para os particulares e para as empresas têm evoluído ao longo do tempo para que se consiga esse equilíbrio.

 

Uma vez que não existe um regime formal de falência para os governos (se bem que Anne Krueger, então directora executiva adjunta do Fundo Monetário Internacional, tenha proposto um há mais de uma década), os países têm dependido de um enfoque baseado no mercado para resolverem os problemas de endividamento excessivo. Nos termos desta abordagem, o país oferece-se para trocar obrigações prestes a vencer por novas obrigações, com um valor facial mais baixo e/ou pagamentos com juros mais baixos e maturidades mais longas. Se a maioria dos investidores aceitar a oferta, a reestruturação dá-se com sucesso.

 

Mas isto implica um problema-chave: ao passo que um tribunal de falências pode forçar os credores inflexíveis a aceitarem a oferta de troca, desde que uma significativa maioria dos credores já o tenha feito (o chamado 'cram down' - reestruturação forçada), a abordagem baseada no mercado permite que alguns credores continuem a negar-se a isso e intentem um processo em tribunal para serem pagos na totalidade.

 

É por isso que, ao longo da última década, os governos ampliaram o enfoque baseado no mercado, com uma abordagem contratual que resolve o problema da inflexibilidade mediante a introdução de cláusulas de acção colectiva (CAC) que podem forçar os credores inflexíveis a aceitarem as condições acordadas pela maioria dos credores. Estas cláusulas tornaram-se um padrão nas obrigações soberanas, mas eram inexistentes no que diz respeito à dívida emitida pela Argentina antes de 2001, quando o país foi atingido pela crise. Apesar de 93% dos credores da Argentina terem aceitado os novos termos para as suas obrigações soberanas em 2005 e em 2010, em duas ofertas de troca, um pequeno grupo de credores inflexíveis processou a Argentina nos Estados Unidos e, com o Supremo Tribunal dos EUA a dar recentemente a sua decisão sobre o assunto, conquistaram o direito a serem reembolsados na totalidade.

 

A decisão do tribunal norte-americano é perigosa por duas razões. Em primeiro lugar, o tribunal decidiu pela primeira vez que um país não pode continuar a pagar aos credores que aceitaram uma grande redução ('haircut') do valor que lhes era devido enquanto não pagarem na totalidade aos que não aceitaram qualquer redução. Assim sendo, que razões teria qualquer futuro credor para votar a favor de uma reestruturação ordenada se os seus novos direitos podem ser bloqueados por um único credor inflexível?

 

Em segundo lugar, se os credores inflexíveis forem reembolsados na íntegra, a maioria dos credores que aceitou um 'haircut' pode exigir ser também pago na totalidade. Se isso acontecer, o encargo da dívida do país irá disparar de novo, tornando-se insustentável e obrigando o governo - neste caso, a Argentina, que está a pagar a maioria da sua dívida - a voltar a incumprir perante todos os credores.

 

A inclusão das CAC nos novos contratos obrigacionistas poderá ajudar outros países, no futuro, a evitarem o problema dos credores inflexíveis. Mas mesmo os CAC poderão não ser uma solução completa, pois estão concebidos de modo a permitir que uma pequena minoria de credores se negue a perdoar parte da dívida, impedindo assim uma reestruturação ordenada.

 

Ou bem que se concebem e introduzem super-CAC (se bem que deva demorar anos a incluí-los em todos os novos contratos obrigacionistas) ou bem que a comunidade internacional poderá querer reconsiderar até que ponto é que se deve ressuscitar a proposta de 2002 do FMI de criação de um tribunal formal de falências para os devedores soberanos. Não se deve permitir que quem assume posições inflexíveis seja capaz de bloquear acordos de reestruturação ordenada que beneficiam simultaneamente os devedores e os credores.

 

Presidente da Roubini Global Economics e professor na Stern School of Business da Universidade de Nova Iorque.

 

© Project Syndicate, 2014.

www.project-syndicate.org

Tradução: Carla Pedro

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