Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
15 de Setembro de 2016 às 20:00

Brexit e o futuro da Europa

Qualquer proposta sobre o futuro das relações UE-Reino Unido deve partir de uma interpretação do significado do referendo sobre o Brexit.

  • ...

Ninguém sabe ainda quando é que o Reino Unido vai apresentar uma agenda para negociar a sua saída da União Europeia. Mas já é evidente que o Brexit vai remodelar o mapa da Europa. E, tendo em conta o despreparo impressionante do Reino Unido relativamente às consequências da sua própria decisão - a sua estratégia, prioridades, e até mesmo o seu calendário permanecem incertos - a UE deve começar a descobrir como fazê-lo da melhor forma. Eis como.

 

Vamos começar pelas únicas certezas: as negociações do Brexit serão longas, complexas e amargas, e o divórcio terá efeitos geopolíticos de longo alcance. O impacto imediato é a interrupção de 60 anos de dinâmica de integração. A Europa vai sofrer, a curto e médio prazo, já que vai dedicar ao Brexit uma energia política considerável nos próximos cinco anos, numa altura em que a UE precisa de força para enfrentar perigos internos e externos. A longo prazo, o Brexit tende a acelerar a saída da Europa do lugar cimeiro da tomada de decisões global.

 

O Reino Unido não vai escapar a essas consequências. Ainda que possa sair da UE, não se pode afastar da Europa.

 

É por isso que, apesar de os parceiros europeus do Reino Unido não terem escolhido o Brexit, devem gerir as suas consequências com sucesso, o que exige equilibrar duas prioridades. O seu objectivo táctico deve ser chegar a um acordo com o Reino Unido que mantenha a integridade da UE. O objectivo estratégico é preservar a prosperidade e influência da Europa.

 

Foi com estas ideias em mente que eu, juntamente com vários colegas europeus - todos nós agindo a título individual – escrevemos recentemente um artigo propondo um conceito para a Europa em 10-20 anos: uma parceria continental que iria criar uma nova base para a cooperação económica, de segurança e de política externa com o Reino Unido.

 

A ideia económica básica é um modelo para uma relação que é consideravelmente menos profunda do que a adesão à UE, mas mais próxima do que um acordo de livre comércio. Se fosse adoptada, o Reino Unido e a UE poderiam não só preservar os seus laços económicos, como também proporcionar um novo modelo para as futuras relações entre a UE e os vizinhos que não vão juntar-se a ela tão cedo: Noruega, Suíça, Turquia, Ucrânia e, eventualmente, países mediterrânicos do sul.

 

Qualquer proposta sobre o futuro das relações UE-Reino Unido deve partir de uma interpretação do significado do referendo sobre o Brexit. A nossa assume que os eleitores do Reino Unido rejeitaram a impossibilidade legal de limitar os fluxos de trabalhadores da UE e o princípio da soberania partilhada.

 

Estas duas restrições políticas devem ser tomadas como um dado adquirido. A primeira implica que um acordo definitivo entre o Reino Unido e a UE não pode incluir a livre circulação de trabalhadores. A segunda exclui a participação numa política comum e, portanto, implica que qualquer tipo de cooperação deve basear-se em acordos intergovernamentais.

 

A primeira restrição é um obstáculo grave, porque a União Europeia baseia-se na livre circulação de mercadorias, serviços, capitais e trabalhadores. Os parceiros europeus do Reino Unido afirmam veementemente que estas quatro liberdades são indivisíveis e que, se o Reino Unido quer manter o livre acesso ao mercado continental para o seu processamento de dados e serviços financeiros, deve aceitar o acesso ilimitado ao seu mercado de trabalho por parte de trabalhadores polacos ou irlandeses.

 

A liberdade de circulação de trabalhadores é, sem dúvida, essencial para a UE. Com efeito, o direito fundamental de se estabelecer e ganhar a vida noutro país sem pedir permissão não existe em nenhum outro lugar do mundo. Para milhões, este direito incorpora de forma plena o que a UE representa.

 

Mas o Reino Unido fez a sua escolha, e a pergunta certa a fazer agora é se os fortes laços económicos podem ser preservados sem a livre circulação de trabalhadores. Do ponto de vista económico, a resposta é sim: um mercado profundamente integrado de bens, serviços e capital não requer uma total mobilidade do trabalho. O que é necessário é uma mobilidade temporária para acompanhar a integração dos mercados de serviços.

 

Por outras palavras, a liberdade de circulação de trabalhadores é politicamente essencial dentro da UE, mas economicamente dispensável quando se lida com países terceiros. Um acordo económico com o Reino Unido não precisa de a incluir.

 

A segunda restrição é de natureza diferente. Ao contrário de um mercado de pregos ou parafusos, um mercado de serviços financeiros ou de informação deve basear-se numa legislação detalhada que garanta a concorrência leal e proteja os clientes. Uma grande parte da tarefa da UE é preparar essa legislação. Portanto, a questão aqui é como os produtores britânicos podem manter o acesso ao mercado da UE (e vice-versa), se já não fazem parte da legislação.

 

Resolver este dilema seria um dos principais propósitos da parceria continental. Através dela, o Reino Unido iria participar num processo multilateral de consultas sobre o projecto de legislação da UE e teria o direito de levantar preocupações e propor alterações, de modo que o resultado do processo permaneceria consensual na medida do possível. Ambos os lados estariam politicamente empenhados em ouvir o outro. A UE, no entanto, teria a palavra final, de modo que as suas leis seriam aplicadas e cumpridas.

 

Para desfrutar de pleno acesso ao mercado da UE, o Reino Unido teria de chegar a acordo sobre um pacote de políticas essenciais para o bom funcionamento de um mercado integrado: regras de concorrência, defesa do consumidor e direitos sociais fundamentais, por exemplo, e possivelmente regras mínimas ao nível fiscal para evitar distorções do tipo recentemente exemplificado pelas práticas da Apple. O Reino Unido também teria de contribuir para o orçamento da UE, a partir do qual são entregues os fundos de desenvolvimento.

 

Alguns defendem que, para o Reino Unido, seria muito duro aceitar este acordo. Mas seria melhor para o país perder o acesso ao mercado do seu principal parceiro comercial?

 

Outros temem que a UE perca os seus poderes de tomada de decisão ao consultar-se com terceiros. Mas como é que os poucos sem voto – o Reino Unido e outros - dominam a maioria com poder de voto?

 

Outros afirmam ainda que este acordo significaria demasiadas cedências para o Reino Unido, levando outros países a querer o mesmo estatuto e provocando a desintegração da UE. Mas porque é que um membro da UE estaria melhor do lado de fora, respeitando as regras e contribuindo para o orçamento da EU, sem ter voto na formulação das políticas? E, longe de minar a integração europeia, uma parceria continental poderia apoiar a consolidação do núcleo da UE.

É verdade, haveria um preço a pagar para todos. Mas seria muito menor do que o preço - em termos de prosperidade perdida e menor influência global - de não criar uma parceria continental.

 

Jean Pisani-Ferry é professor na Hertie School of Governance em Berlim e comissário-geral da France Stratégie.

 

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2016.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

Ver comentários
Mais artigos de Opinião
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio