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Precisamos de uma revolução alimentar

O que é necessário não é apenas um ajustamento politicamente tolerável às políticas existentes, mas sim uma reforma de fundo que gere resultados reais. Infelizmente, não é evidente que existam políticos à altura do desafio, tanto nos erráticos e polarizados EUA como nos ineficientes Parlamento Europeu e Comissão Europeia.

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Em 1984, reuni os músicos mais bem-sucedidos da altura para formar um "supergrupo" chamado Band Aid, com o objectivo de angariar fundos para combater a fome na Etiópia. No ano seguinte, formou-se um grupo ainda maior para o Live Aid, um importante concerto de beneficência e uma iniciativa de angariação de fundos baseada na música que continua até hoje. No Fórum Internacional sobre Alimentação e Nutrição, organizado em Junho pela Fundação Barilla, a necessidade persistente – e cada vez mais urgente – de esforços para o fortalecimento da segurança alimentar não pôde ser mais óbvia.

O destino dos habitantes da Ilha de Páscoa ilustra o actual problema do mundo. Em algum momento do século XII, um grupo de polinésios chegou a uma remota ilha vulcânica onde densas florestas forneciam comida, animais, assim como ferramentas e materiais para construir centenas de esculturas de pedra complexas e misteriosas. Mas, pouco a pouco, as pessoas destruíram essas florestas, acabando por cometer um suicídio social, cultural e físico.

 

Hoje, em termos relativos, temos apenas uma pequena área de floresta - e estamos a destruí-la com muita rapidez. Estamos a ficar sem terra para cultivar e o deserto está a alastrar. Os alimentos que produzimos são muitas vezes desperdiçados, enquanto mil milhões de pessoas não têm o que comer - uma realidade que deixa muita gente com poucas opções a não ser migrar.

 

A maior parte da cobertura mediática concentra-se nos refugiados que fogem de conflitos armados (como na Síria) ou em migrantes que procuram melhores oportunidades económicas (pensemos na Nigéria ou no Paquistão). Mas a ligação entre a escassez de alimentos e a migração é mais forte do que parece para aqueles que não estão entre os que passam fome.

 

Por exemplo, as revoltas da Primavera Árabe de 2010-2011, que produziram uma onda massiva de refugiados, foram desencadeadas por um aumento nos preços do trigo, que levou a tumultos generalizados que se transformaram em revoluções políticas mais amplas. Na verdade, muitos conflitos armados e o deslocamento em massa que provocam podem ser atribuídos à insegurança alimentar.

 

Enquanto o Sul pobre morre de fome, o Norte rico tem demasiada comida. Mais de dois mil milhões de pessoas têm excesso de peso, inchadas por açúcares de baixo valor alimentar e por alimentos processados produzidos em massa e ricos em gorduras. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, bastaria um quarto dos alimentos que deitamos fora ou desperdiçamos todos os anos para alimentar 870 milhões de pessoas famintas. Por todo o mundo, desperdiça-se um terço de todas as colheitas. Como os habitantes da Ilha de Páscoa do passado, estamos a preparar-nos para a auto-aniquilação.

Além disso, as alterações climáticas provocadas pelo homem ameaçam intensificar as pressões existentes que afectam o abastecimento de alimentos e a migração. Num relatório publicado em Dezembro passado, o Centro Europeu de Estratégia Política da Comissão Europeia antecipou que secas e inundações cada vez mais frequentes "superarão todos os outros propulsores da migração", e que, em 2050, haverá mil milhões de pessoas deslocadas a nível global. Mesmo a estimativa mais baixa de 25 milhões de migrantes, adverte o relatório, "faria parecer pequenos os níveis actuais de novos refugiados e de pessoas deslocadas internamente".

É verdade que estão a ser tomadas algumas medidas para fazer face ao desperdício e escassez alimentares. Por exemplo, este ano a Comissão Europeia propôs cortes aos subsídios agrícolas, que contribuem para a sobreprodução. Mas esta abordagem – apresentada como uma "evolução", em vez da "revolução" que é necessária – não é, nem de longe, a adequada.

Há muito que a política agrícola comum é altamente problemática. A PAC autorizou a aplicação de receitas fiscais na produção excedentária de alimentos, que eram depois armazenados (com um custo adicional) e que acabavam por ser destruídos (com ainda mais custos). O sistema melhorou ligeiramente ao longo dos anos, mas não o suficiente. A legislação agrícola nos Estados Unidos – a principal ferramenta de política agrícola e alimentar do governo federal – promove, igualmente, o desperdício.

O que é necessário não é apenas um ajustamento politicamente tolerável às políticas existentes, mas sim uma reforma de fundo que gere resultados reais. Infelizmente, não é evidente que existam políticos à altura do desafio, tanto nos erráticos e polarizados EUA como nos ineficientes Parlamento Europeu e Comissão Europeia.

A hora de ir em frente foi ontem; a hora de adoptar uma nova abordagem é agora. Podemos discutir os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas - que incluem metas como "reduzir para metade o desperdício global de alimentos per capita no retalho e no consumidor, e reduzir as perdas alimentares ao longo das cadeias produtivas e de fornecimento até 2030" - até à exaustão. O que importa são políticas bem concebidas, eficazes e abrangentes, implementadas de forma sustentada. E essas não existem em lado nenhum.

 

A Terra tem 45 milhões de séculos, mas o nosso século é único, porque é o primeiro em que uma espécie pode destruir toda a base da sua própria existência. Contudo, nós, os habitantes da Ilha de Páscoa dos nossos dias, parecemos alheios a esta ameaça existencial, e preferimos construir estátuas em vez de sistemas sustentáveis para a nossa sobrevivência.

 

Será que só vamos reconhecer a nossa situação quando a terra se tornar um deserto, quando os nossos sistemas de saúde colapsarem, quando até mesmo os ricos enfrentarem escassez de alimentos, quando a água doce se tornar escassa e quando as nossas linhas costeiras forem violadas? Nessa altura, será tarde demais e o nosso destino estará traçado.

 

A maior ameaça ao nosso planeta é a crença de que alguém o salvará. Cada um de nós deve reconhecer a seriedade da nossa situação e exigir acções concretas para a mudar. Estou a falar de si.

 

Bob Geldof é um cantor e compositor irlandês, autor e activista político. É o fundador e presidente do Band Aid Trust para o combate da fome em África, e membro do Africa Progress Panel.

 

Copyright: Project Syndicate, 2018.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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