Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
27 de Junho de 2015 às 20:00

A charada da manipulação cambial

Esta é também a mudança que ressalta da hipocrisia do Congresso. A acusação de manipulação cambial não é mais do que o escudo que faz com que os Estados Unidos evitem a responsabilidade de resolver o problema das poupanças do país.

  • ...

À medida que o Congresso norte-americano lida com a sempre controversa Parceria Trans-Pacífica (TPP) – a legislação comercial com a assinatura do presidente Barack Obama – um grande obstáculo se avizinha. A 22 de Maio, o Senado evitou-o, ao chumbar por uma pequena margem – 51 contra 48 – uma emenda proposta sobre a "manipulação cambial" ao projecto de lei que dá a Obama a autoridade para negociar a TPP mediante um procedimento de "via rápida". Mas este tema pode ressuscitar pois o debate virou-se para a Câmara dos Representantes, onde existe um forte apoio às "regras cambiais obrigatórias".

 

Durante pelo menos uma década, o Congresso tem estado focado na manipulação cambial – uma acusação dirigida aos países que supostamente intervêm nos mercados de divisas com o fim de suprimir o valor das suas moedas, subsidiando assim as exportações. Em 2005, os senadores Charles Schumer, um democrata liberal de Nova Iorque, e Lindsey Graham, um republicano conservador da Carolina do Sul, formaram uma aliança improvável para defender os trabalhadores da classe média dos Estados Unidos, que estavam a ser oprimidos por práticas concorrenciais alegadamente injustas. Ao travar a manipulação cambial, a sua argumentação sublinha, estreitar-se-ia o amplo diferencial do défice comercial dos Estados Unidos – o que, por sua vez, proporcionaria benefícios duradouros e significativos aos trabalhadores em dificuldades económicas.   

 

Há uma década, a proposta original Schumer-Graham foi uma iniciativa muito pouco dissimulada contra a China. A ira que motivou a proposta mantém-se hoje em dia, já que a China representou 47% do ainda demasiado amplo défice comercial dos Estados Unidos em 2014. Não importa que o renmimbi chinês tenha subido cerca de 33% face ao dólar norte-americano desde meados de 1995 para um nível que o Fundo Monetário Internacional já não considera subavaliado ou que o excedente da balança corrente da China tenha encolhido de 10% do PIB em 2007 para uns estimados 2% em 2014. A China continua na mira dos políticos americanos que acreditam que os seus trabalhadores são vítimas das suas práticas comerciais injustas.

 

Embora este argumento tenha um grande apelo emocional e político, é profundamente erróneo, porque os Estados Unidos têm um problema insidioso quanto à sua poupança interna. A taxa de poupança líquida nacional dos Estados Unidos – ou seja, a soma total da poupança das famílias, empresas e governo (ajustada à depreciação da capacidade de envelhecimento) – actualmente situa-se nos 2,5% do rendimento nacional. Ainda que seja melhor do que as taxas de poupança negativas de 2008-2011, continua bem abaixo da média de 6,3% das últimas três décadas do século XX.

 

Devido à sua carência de poupanças e aos seus desejos de crescimento, os Estados Unidos vêem-se obrigados a importar poupanças excedentes do exterior. E para atrair capital estrangeiro, não têm escolha senão ter, por sua vez, grandes défices na sua balança de pagamentos.

 

Assim, não é uma coincidência que a economia dos Estados Unidos tenha um défice da conta corrente crónico. Ainda que este défice tenha encolhido de um máximo de 5,8% do PIB em 2006 para 2,4% em 2014, para poder crescer a economia dos Estados Unidos ainda permanece muito dependente da poupança externa excedente.

 

É neste ponto que o défice comercial entra em jogo. Os Estados Unidos não têm acesso à poupança externa excedente por arte de magia. Para atrair o capital de que precisa, os Estados Unidos devem enviar dólares para o estrangeiro através do comércio externo.

 

E é aqui que o argumento da manipulação cambial cai por terra. Em 2014, os Estados Unidos obtiveram défices comerciais com cerca de 95 países. Por outras palavras, os Estados Unidos não sofrem de um pequeno número de défices comerciais bilaterais que podem estar vinculados às acusações de manipulação cambial por parte de países como a China, Japão, Malásia ou Singapura. Em vez disso, os Estados Unidos sofrem de um desequilíbrio comercial multilateral com muitos países e isto não pode ser remediado com a imposição de sanções bilaterais, tais como tarifas.

 

Se os Estados Unidos não resolverem o seu problema de poupanças, restringir o comércio com alguns países, denominados como países manipuladores de divisas, levaria simplesmente a uma distribuição do défice comercial do país com os seus outros parceiros comerciais. De facto, a balança comercial dos Estados Unidos é como um balão de água – a aplicação de pressão num ponto simplesmente faz com que a água se mova para outros locais.

 

Além disso, esta abordagem pode facilmente chegar a ser contraproducente. Por exemplo, supondo que não há um aumento na poupança interna nos Estados Unidos, quando se penaliza um produtor de baixo custo como a China por manipulação cambial, muito provavelmente, levaria a que a participação da China no défice comercial com os Estados Unidos fosse realocada entre outros produtores com custos mais elevados. Isso seria a função equivalente a uma subida de impostos às famílias da classe média – precisamente o grupo de eleitores que tanto preocupa o Congresso. Além disso, poderiam surgir maiores complicações caso se deixe o veredicto sobre a manipulação cambial – mercado que presumivelmente depende de algum tipo de métrica do "valor justo" – nas mãos dos políticos.

 

Esta é também a mudança que ressalta da hipocrisia do Congresso. A acusação de manipulação cambial não é mais do que o escudo que faz com que os Estados Unidos evitem a responsabilidade de resolver o problema das poupanças do país. Perante a falta de qualquer sinal que aponte para uma estratégia para impulsionar as poupanças – não apenas uma solução de longo prazo para o défice do governo federal, mas também através de incentivos significativos à poupança pessoal – os políticos dos Estados Unidos recorreram mais uma vez a uma solução rápida.

 

Ao fim e ao cabo, não há forma de o evitar: se o Congresso não gosta de défices comerciais, precisa de abordar o problema de poupança dos Estados Unidos e deve deixar de se fixar em preocupações fora de local sobre a manipulação cambial.

 

Nada disto tem a intenção de argumentar que os Estados Unidos devam ignorar as práticas comerciais desleais. Como membro da Organização Mundial de Comércio, os Estados Unidos têm amplas oportunidades para utilizar o mecanismo de solução de controvérsias do dito organismo com a finalidade de liquidar grandes problemas com os seus sócios comerciais. E têm conseguido grandes êxitos com esta abordagem. O que o Congresso não pode fazer é fingir que uma política comercial desprevenida é a resposta para a sua incapacidade ou falta de vontade para reorientar a sua agenda políticas internas.

   

Claro, é sempre mais fácil culpar os demais em vez de olhar ao espelho. Mas a história não tem sido simpática para as grandes asneiras comerciais. Assim como o decreto-lei Smoot-Hawley Tariff de 1930 provocou uma guerra comercial mundial que pode bem ter colocado o adjectivo "grande" na Grande Depressão, hoje em dia a promulgação por parte do Congresso de regras cambiais poderia desencadear medidas de represália que pudessem destruir o livre fluxo do comércio de que uma economia mundial com problemas precisa desesperadamente.

 

O Senado dos Estados Unidos actuou com sabedoria ao rejeitar esta opção perigosa. Apenas podemos esperar que prevaleça uma sabedoria similar na Câmara dos Representantes. A legislação sobre a manipulação cambial é uma tragédia que pode e deve ser evitada.

 

Stephen S. Roach, membro do corpo docente da Universidade de Yale e ex-presidente do Morgan Stanley na Ásia, é o autor deUnbalanced: The Codependency of America and China.

 

© Project Syndicate, 2015.

www.project-syndicate.org

Tradução: Raquel Godinho

Ver comentários
Mais artigos de Opinião
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio