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Enfrentar a realidade na Zona Euro

O recente discurso do presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, no encontro anual de presidentes de bancos centrais em Jackson Hole, Wyoming, tem gerado grande interesse, mas as implicações das suas observações são ainda mais surpreendentes do que muitos inicialmente reconheceram.

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Se deve ser evitada uma ruptura da Zona Euro, escapar de uma recessão continuada exige maiores défices orçamentais financiados com dinheiro do BCE. A única questão é saber o quão abertamente se admitirá essa realidade.

 

Os últimos dados económicos têm forçado os responsáveis políticos da Zona Euro a enfrentar os graves riscos de um cenário de deflação, evidentes há pelo menos dois anos. A inflação está muito abaixo da meta de 2% do BCE, e o crescimento do PIB está paralisado. Sem uma forte acção política, a Zona Euro, como o Japão desde a década de 1990, enfrenta uma década perdida ou duas de crescimento dolorosamente lento.

 

Até ao mês passado, as crescentes preocupações conduziram a propostas políticas pouco convincentes. Jens Weidmann protagonizou o espectáculo novelesco de um presidente do Bundesbank a apelar a salários mais elevados. Mas o crescimento salarial não terá lugar sem políticas de estímulo.

 

Draghi procurou reduzir a taxa de câmbio do euro para melhorar a competitividade. Mas o Japão e a China também querem taxas de câmbio competitivas para estimular o crescimento das exportações, e a Zona Euro já tem um excedente em conta corrente. O modelo alemão de crescimento impulsionado pelas exportações não pode funcionar para a Zona Euro como um todo. Alguns países precisam de reformas estruturais para aumentar o potencial de crescimento a longo prazo; mas o impacto das reformas estruturais no crescimento a curto prazo é muitas vezes negativo.

 

A Zona Euro precisa de uma maior procura interna para escapar ao excesso de dívida herdado da pré-crise. Em países como Espanha e Irlanda, as dívidas privadas cresceram a um ritmo insustentável??. Noutros, como a Grécia e Itália, a dívida pública também cresceu demasiado. Tanto o consumo das famílias como o investimento empresarial e a despesa pública têm sido cortados numa tentativa de reduzir a dívida.

 

Mas a desalavancagem pública e privada, em simultâneo, conduz necessariamente a uma queda da procura e do crescimento. Perante a desalavancagem privada na década de 1990, o Japão só pôde evitar uma depressão ainda mais profunda acumulando grandes défices públicos.

 

É por isso que a austeridade na Zona Euro se tornou auto-destrutiva. Por exemplo, quanto mais o governo italiano reduzir a despesa pública ou aumentar os impostos, mais a sua dívida pública – que supera já 130% do PIB - irá crescer para níveis insustentáveis??.

 

Até há duas semanas, os responsáveis políticos da Zona Euro negaram esta realidade. A 22 de Agosto, em Jackson Hole, Draghi encarou-a de frente. Sem um aumento da procura agregada, argumentou ele, a reforma estrutural poderá ser ineficaz; e uma maior procura requer estímulos fiscais juntamente com uma política monetária expansionista.

 

Os economistas italianos Francesco Giavazzi e Guido Tabellini especificaram o que poderia significar uma política fiscal e monetária coordenada. Propuseram cortes nos impostos equivalentes a 5% do PIB por 3 ou 4 anos em todos os países da Zona Euro, financiados pela dívida pública de muito longo prazo, que seria adquirida pelo BCE. Os dois economistas defendem que a flexibilização quantitativa do BCE será ineficaz sem uma menor pressão fiscal.  

 

As propostas de Giavazzi e Tabellini podem implicar um estímulo excessivo. Mas eles também destacam uma questão crucial: Como é que a flexibilização quantitativa estimula a economia? O Banco da Inglaterra apresentou a flexibilização quantitativa como um instrumento puramente de política monetária que sustenta o crescimento económico em face da consolidação orçamental necessária e desejável. Como explicou o Banco de Inglaterra, este instrumento funciona através da redução das taxas de juro de médio prazo, do aumento dos preços dos activos, e porque induz mudanças nas preferências dos investidores que estimulam indirectamente o investimento e, portanto, a procura.

 

A posição da Reserva Federal dos Estados Unidos tem sido mais ambígua. O vice-presidente, Stanley Fischer, como o ex-presidente Ben Bernanke, destacaram que a uma consolidação orçamental prematura pode atrasar a recuperação pós-crise. Assim, a Fed tem considerado implicitamente a flexibilização quantitativa, em parte como uma ferramenta para garantir que o aumento dos rendimentos dos títulos não compensa o impacto benéfico dos grandes défices.

 

A posição da Fed é mais persuasiva. O estímulo fiscal tem um impacto directo e poderoso na procura. Nas palavras de Milton Friedman, vai directamente ao "fluxo de rendimentos correntes". O estímulo monetário, por si só, é menos directo, requer mais tempo e pode causar efeitos colaterais adversos. Taxas de juro baixas permitem que as empresas mal sucedidas continuem a agonizar atrasando o crescimento da produtividade; o aumento dos preços dos activos exacerba a desigualdade; e o estímulo monetário só funciona reavivando o crescimento do crédito privado que, em última instância, gerou o excesso de dívida.

 

Mas se o estímulo fiscal deve ser facilitado por compras de títulos por parte do banco central para evitar subidas das suas rendibilidades e dissipar receios quanto à sustentabilidade da dívida, não estaremos a falar de financiamento monetário dos défices orçamentais?

 

A resposta depende de quão permanentes sejam essas compras. No Japão, onde o banco central passou a deter títulos de dívida pública equivalentes a 35% do PIB (um nível que está a crescer rapidamente), certamente serão. Não há um cenário credível em que o Japão possa gerar excedentes orçamentais grandes o suficiente para pagar a sua dívida acumulada: uma proporção significativa ficará permanentemente no balanço do Banco do Japão. Da mesma forma, se fossem adoptadas as propostas de Giavazzi e Tabellini, o resultado seria certamente algum aumento permanente no balanço do BCE.

 

Devemos admitir essa possibilidade explicitamente e com antecedência? O argumento a favor é que não fazê-lo levantaria temores sobre como o aumento da dívida pública jamais seria reembolsado, ou sobre como o BCE iria "sair" de um balanço inchado que, por sua vez, minaria o impacto estimulante da coordenação fiscal e monetária. O argumento contra é o risco moral: Se admitirmos que os défices modestos, financiados pelo BCE, são possíveis e apropriados agora, o que vai impedir os políticos e os eleitores de exigirem grandes défices financiados pelo BCE noutras ocasiões?

 

Os riscos políticos são certamente grandes. A política óptima pode, portanto, requerer um artifício pouco transparente; a "coordenação" monetária e fiscal pode significar, de facto, o financiamento monetário permanente, mas sem nunca admitir abertamente essa possibilidade. Mas, com transparência ou não, Draghi conseguiu um grande avanço no debate. Sem um papel maior por parte da política fiscal, a Zona Euro enfrentará um crescimento lento e contínuo ou até uma eventual ruptura.

 

AdairTurner, antigo presidente da Autoridade de Serviços Financeiros do Reino Unido, é, actualmente, membro do Comité de Política Financeira do Reino Unido e da Câmara dos Lordes.

 

Direitos de autor: Project Syndicate, 2014.

www.project-syndicate.org

 

Tradução: Rita Faria 

 

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