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Baptista Bastos - Cronista b.bastos@netcabo.pt 15 de Setembro de 2006 às 13:59

Visibilidade e ocultação

A minha geração deve à cultura norte-americana parte substancial da sua formação. Aprendemos, com as grandes tradições liberais daquele imenso país, a importância dos valores e dos padrões que os próprios americanos, aliás, haviam importado da Europa.

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A relação de interdependência cultural advém de associações entre os princípios, as interiorizações desses princípios e aqueles que são praticados. Está tudo nos gregos: todos os contratos humanos e, portanto, sociais, só existem através dessas associações. Billy Wilder, o grande cineasta de origem austríaca, disse, um dia, que «os Estados Unidos abrigam todas as ansiedades nascidas dos vulcões de culturas de que é feita a sua constituição ética».

Num eufemismo delicado poderemos talvez dizer que certas aflorações de totalitarismo, embora combatidas pelos sectores mais progressistas daquela sociedade, têm deixado profundas mazelas e insanáveis azedumes. Não é uma democracia perfeita. No entanto, possui instrumentos que permitem, ocasionalmente, evitar o pior. Se o macartismo não foi um caso isolado, no historial dos EUA, e resultou das históricas tentações de hegemonia de uma casta dirigente, alternadamente do poder, a verdade é que a política externa pouco se altera estejam na Casa Branca democratas ou republicanos.

É nesse sentido que se pode, e deve, falar na ilusão perigosa que consiste a ideia, muito generalizada, de que os Estados Unidos representam a quintessência do respeito pelos direitos humanos, e de que as coisas melhoram extraordinariamente quando os democratas estão no Executivo. A guerra na Coreia e no Vietname; as invasões da Baía dos Porcos, de Grenada; o apoio a golpes de Estado de extrema-direita e à sustentação de sanguinários ditadores no Brasil, no Uruguai, no Paraguai, na República Dominicana, na Colômbia, na Nicarágua; na Indonésia, no Médio Oriente, e um pouco por toda a parte, foram-no sob a direcção de republicanos ou de democratas. Sem esquecer o Chile, em 11 de Setembro de 1973, onde foram assassinadas treze mil pessoas, milhares delas selvaticamente torturadas (ao cantor Victor Jara deceparam as mãos), outras atiradas de aviões em pleno voo. Com o amparo e o aplauso dos Estados Unidos da América. E tudo indica que a invasão do Iraque não será a última?

A tensão «antiamericana» tem raízes antigas. Nascem no começo do século XX, com a assim chamada política de canhoneira, ou do big stick. As invasões e as guerras regionais atingiram aspectos inacreditáveis. Parte do México foi anexada: havia petróleo, e estava o assunto arrumado. Na Europa do pós-guerra chamavam, à arrogante presença das tropas americanas, a «invasão branca», e na bacia do Mediterrâneo ainda hoje se não esquece as cenas de violência e de prepotência causadas pelos «libertadores». Basta ler Malaparte. Quando nos assustamos, e com inteira razão, dos perigos que nos cercam, e nos quais o terrorismo é uma componente, temos de assumir a direcção do que desejamos e do que rejeitamos. Para isso, são necessários conhecimentos sérios informações pormenorizadas. A pendência ideológica desempenha, aqui, um papel fulcral, porque obnubila o discurso possível da razão.

A Europa deve aos Estados Unidos o que os Estados Unidos devem à Europa. A responsabilidade cívica, moral e cultural de uma é igual à de eles. E a grandeza destes pode ser mensurável com a importância daquela. Parece-me que se manifesta, entre alguns intelectuais europeus, uma peculiar subalternização acerca do «débito» devido aos norte-americanos. Ao mesmo tempo que se sobrevaloriza o papel, declaradamente importante, que tiveram na II Grande Guerra. Porém, subestima-se as batalhas da Resistência em muitos países, a participação da União Soviética no conflito e os seus milhões de mortos e estropiados, a guerrilha católica e os patriotas polacos, checos, alemães antinazis, holandeses, belgas que formaram unidades de combate junto a De Gaulle e aos Aliados.

É surpreendente, ou não o será assim tanto, que certos intelectuais e políticos, ditos «europeístas», afinem pelo diapasão daqueles, na realidade, inimigos da Europa, e trompetistas da expansão do império americano. Há algo de irracional nesta gente, objectivamente favorecedora de um clima de desconfiança e de crispação, por vezes insuportável.

Os acontecimentos do 11 de Setembro de 2001 trouxeram à flor dos dias as contradições e as evidências. Naturalmente, um homem de bem é contra o terrorismo, cuja infâmia mais «mediática» obteve a expressão na destruição das Torres Gémeas. O concentrado de terror de que as imagens forneceram uma ideia mobiliza as nossas emoções e as forças das nossas repulsas. Mas todo o caos corresponde a causas, amiúde dissimuladas ou mesmo ocultas pelos políticos e pelos imensos e obscuros interesses económicos. Muito foi dito e escrito sobre o medonho acto. Muito mais precisa de ser esclarecido - inclusive as origens religiosas das três mil vítimas. As leis democráticas dispõem de meios, os mais eficazes, para clarificar e defender. Todavia, estou em crer que há gente nada interessada em fazer funcionar a máquina da democracia.

Será que os serviços de inteligência dos EUA deixaram de ser detentores da eficácia que os tornou lendários? Sabe-se que algumas agências, entre as quais a CIA, haviam sido prevenidas de que «algo de terrível se preparava». Nada foi feito. Porquê? E, como dramaticamente alguém perguntou, no último Prós e Contras da RTP-1: «Na conspiração estavam, apenas, envolvidos aqueles doze ou catorze homens?» Que se passou realmente?

Há numerosas perguntas cujas respostas têm sido ocultadas. Em nome dos «interesses norte-americanos». Cito De Gaulle: «O que interessa aos Estados Unidos não interessa ao resto do mundo».

APOSTILA 1 - «Rosa Brava», o belo romance histórico de José Manuel Saraiva, antigo redactor do «Expresso», entrou na sétima edição, pouco meses após ter sido editado pela Oficina do Livro. Surpreendentemente, este facto, muito pouco habitual no mundo da edição portuguesa, não tem sido noticiado pela Imprensa. O extraordinário suplemento «Mil Folhas», tão atento às florestias de alguns sólidos medíocres, conhecidos apenas porque o são, manifesta uma discreta reserva informativa sobre este e assuntos semelhantes. O autor de «Rosa Brava», entretanto, já assinou contrato de traduções do seu romance com quatro editoras estrangeiras. A ocultação resulta, sempre, de ignorância ou de má-fé.

APOSTILA 2 - Dilecto: vivamente lhe aconselho a leitura de um dos grandes textos de Robert Walser, «O Ajudante», editado pela Relógio de Água. Walser (1887-1956) é um dos génios literários do século XX. Suíço de expressão germânica, os seus livros constituem uma perturbante indagação acerca da recôndita natureza do ser humano, e da perplexidade que lhe provoca o mundo e os seus desvios contraditórios. Tradução de Isabel Castro Lima. 233 páginas. 14 euros e 40. De Robert Walser a Relógio de Água já publicou «O Salteador», «A Rosa» e «Jakob von Gunten. Um Diário». A visibilidade contra a ocultação.

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