Opinião
Unidade nacional belga em perigo
As tradicionais rivalidades belgas entre flamengos e valões que estiveram apaziguadas durante os últimos oito anos de governação do primeiro-ministro Guy Verhofstadt, rebentaram de novo com fragor, e de forma perigosa, no coração da Bélgica, um país que é
A questão não é nova, mas é preocupante, uma vez que se trata de um país fundador das Comunidades com um papel que se pode considerar exemplar e crucial no processo de construção europeia, mas que, muito sob pressões da extrema-direita, está a reagir neste pós processo eleitoral de forma perigosa, em termos de unidade nacional.
Tudo porque Yves Leterne, líder dos cristãos-democratas flamengos, que ganhou as últimas eleições legislativas de Junho, foi até agora incapaz de formar governo conforme mandato que lhe tinha sido conferido pelo rei Alberto II, que interrompeu, inclusive, as férias para tomar conhecimento da impossibilidade de um acordo entre os quatro partidos liberais e cristãos-democratas francófonos e flamengos que era suposto reunir numa coligação dita laranja e azul.
Na sequência, a Bélgica encontra-se mergulhada numa crise política profunda não apenas porque não consegue formar governo, mas porque esta incapacidade traduz o reacender das velhas rivalidades no seio de um Estado que é incapaz de se reconhecer como Nação, ameaçando, no limite a sua integralidade territorial.
Com efeito, os partidos flamengos, sobretudo o do indigitado primeiro-ministro, radicalizaram o discurso, muito na senda da tónica da extrema-direita, julgando insultuosa e arrogante a atitude dos francófonos que resistem a um programa eleitoral centrado numa forte reforma da vertente institucional destinada, sobretudo, a aumentar a autonomia das regiões e, logo, a reforçar os seus poderes. Ou seja, pretende-se que a região da Flandres possa decidir de forma completamente independente, por exemplo, em matéria de justiça, sobre partes substanciais de questões de emprego, de segurança social ou mesmo sobre a obtenção da nacionalidade.
Neste ponto a intransigência de Yves Leterne foi absoluta, a ponto de ter esquecido o seu papel de árbitro e moderador, que é suposto tentar alcançar sempre consensos políticos, o que não prenuncia nada de bom na sua governação, tudo indica, como próximo chefe de governo. Nada de bom nem para o país nem para a União Europeia, arriscando-se com a sua atitude a empurrar a Bélgica para uma cisão entre a Flandres e a Valónia, num divórcio à Checoslováquia.
Recorde-se que os velhos rancores entre estas duas regiões belgas são ancestrais e reportam-se à independência do país em 1830, em que a burguesia, que se exprimia em francês e era a classe dominante do Reino, considerava os flamengos como meros camponeses que falavam um mero patois, língua considerada pouco elegante e elaborada. E foi, justamente, a questão linguística que foi tomada como símbolo e bandeira da libertação pelos flamengos do jugo da classe dominante francófona.
A economia ajudou, dado que nos anos 60, a poderosa siderurgia da região da Valónia entrou em decadência e teve como contraponto a ascensão económica e social dos flamengos que foram, por seu turno, ganhando poderes crescentes, mas que nunca esqueceram as humilhações a que no antanho estiveram sujeitos, pelo que neste impasse, parece impossível a escolha de um outro candidato a primeiro-ministro que não seja flamengo, até na senda da tradição dos três últimos.
Todo este cenário visto de fora parece incompreensível, mas o facto é que a questão linguística já fez cair governos na Bélgica e continua, recorrentemente, a ameaçar a unidade nacional. Há quem considere que recusar, neste governo, uma ampla descentralização, equivale a preparar o terreno para o separatismo.
Esperemos, contudo, que acabar com a Bélgica seja mais difícil que tentar procurar, ainda, um novo compromisso governativo. Tudo a bem do país e da causa europeia.