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Opinião
04 de Novembro de 2005 às 13:59

Uma questão de cultura

Os jornais que, ainda não há muito, acusavam Cavaco Silva do pior, são os mesmos que o incensam acriticamente. As adesões precipitadas ao candidato «não-político» chegam a ser afrontosas.

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Português e vivo
É diminutivo.
Só fazemos bem
Torres de Belém
CARLOS QUEIROZ
«Desaparecido»


Na apresentação do programa presidencial do prof. Cavaco Silva, taciturno espectáculo ocorrido no Porto, o prof. João Lobo Antunes leu um texto notável sobre as funções e os imperativos morais associados ao Presidente; e o candidato apresentou os itens de um projecto de Governo. Episódio assaz surpreendente, por câmbio de papéis. O mandatário estava descontraído; o discurso, uma peça literária de primeira água. O prof. Cavaco apresentava-se tenso, pouco à vontade, retesado, embaraçado e duvidoso do papel que desempenhava: o costume. Quem parecia o candidato: o mandatário - leve, desenvolto no estilo e no estofo. Acaso não tivesse feito a minha escolha, e o candidato a Belém fosse João Lobo Antunes, este teria o meu voto entusiástico.

Passo a explicar: embora a modéstia exposta seja um enternecedor sinal de vaidade, o magnífico estilo deste Lobo Antunes corresponde às minhas preferências literárias, e, pelo que julgo saber e o tenho ouvido, ele não vende fruta com bicho. Quero dizer: um homem decente e íntegro, culto, informado, lido, e aspergido por um espírito aristocrático revelado nos modos, na elegância das respostas, nas questões que nos propõe.

Ao ver o making off da inolvidável sessão perguntei-me: que faz um homem daquela estirpe intelectual entre muitos dos que só ali estão para promoção pessoal, cobiças de cortesãos, manhas e arteirices, vinganças e maus olhados - sim, que faz? E porque digo eu isto? Li-lhe os belíssimos livros; admirei o espantoso prefácio ao mediano livro «De Profundis - Valsa Lenta», de Cardoso Pires; sei do seu aprazimento pela higiene da alma e pelo asseio civilizacional; da sua exigência ética, do seu rigor cívico, da sua incapacidade para o ardil.

Votaria nele sem hesitação. Como votaria noutro, da sua linhagem e nobreza: Vasco Vieira de Almeida. Por uma questão de cultura. O meu voto actual pode ser admitido como correspondente a um protesto irritado contra as manigâncias visíveis - e a um desespero de causa. É, também, por uma questão de cultura.

Não alimento muitas ilusões. A divisão da Esquerda anima o regresso dos ressentimentos e dá azo à expansão de uma retórica da irresponsabilidade social, sustentada na lógica do lucro pelo lucro. As declarações, entrevistas, depoimentos nos últimos dias prestados pelos grandes senhores da finança são de molde a ficarmos apavorados. Mas o «povo é quem mais ordena». É o povo que «ordenou» as vitórias de Isaltino de Morais, de Fátima Felgueiras, de Valentim Loureiro; e estou inclinado a admitir que Ferreira Torres reganharia a Câmara de Marco de Canaveses, porventura tivesse ali concorrido.

É notório que os partidos se desacreditaram. O desaforo das prebendas, das situações de privilégio, das cumplicidades em negociatas, assim como o escândalo das repentinas e volumosas fortunas têm contribuído para idêntico clima àquele que se viveu no estrebuchar da I República. E é instrutivo verificar a culpabilidade histórica que teve a Imprensa na queda do regime e da ascensão do fascismo. Esquecemo-nos das ditaduras de Pimenta de Castro e de Sidónio Pais, ambas apoiadas por jornalistas a soldo. O «Diário de Lisboa» tem responsabilidades graves na corrosão. O chefe da Redacção, Aprígio Mafra, grande jornalista e monárquico ferrenho, marcava a si próprio a reportagem do Parlamento - para o pôr a ridículo e arrastar para o rancor popular os deputados republicanos.

Está por fazer a história das conivências entre os donos da Imprensa e seus asseclas, e a criação de estados emotivos, conducentes a toda a espécie de perturbações sociais. Os jornalistas recalcitrantes eram atirados para o desemprego. (Como os factos se comparam!). Houve suicidas por desespero. A Igreja tem uma responsabilidade substancial e dramática na evolução dos acontecimentos que levaram o fascismo ao poder. Em vez de cumprir o seu papel moderador, açulava todos os descontentamentos.

As analogias são inevitáveis. Os jornais que, ainda não há muito, acusavam Cavaco Silva do pior, são os mesmos que o incensam acriticamente. As adesões precipitadas ao candidato «não-político» chegam a ser afrontosas. Andam por lá criaturas que, recentemente, atiravam o ex-primeiro-ministro para o mais cruel dos purgatórios, apontando-o como fautor de todos os nossos males.

Havia outras soluções? Talvez. Mas a Esquerda não as desejou ou não soube encontrá-las. Por uma questão de incultura.

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