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23 de Julho de 2007 às 13:59

Um choque fiscal à francesa

Em 2003, a célebre frase “há vida para lá do orçamento”, proferida pelo então Presidente Jorge Sampaio, despertou a proverbial controvérsia entre os defensores de uma política monetarista ortodoxa e os defensores de políticas de crescimento económico,...

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Em 2003, a célebre frase “há vida para lá do orçamento”, proferida pelo então Presidente Jorge Sampaio, despertou a proverbial controvérsia entre os defensores de uma política monetarista ortodoxa e os defensores de políticas de crescimento económico, enquanto estratégia para enfrentar conjunturas recessivas. Como um elefante numa loja de porcelanas, Nicholas Sarkozy logrou, na última reunião do Eurogrupo, relançar esse velho debate entre monetaristas e expansionistas, mas desta feita à escala europeia. Diante dos seus parceiros da zona euro, o presidente francês anunciou a decisão de adiar por dois anos, para 2012, o objectivo de equilíbrio orçamental ou défice zero, conforme está inscrito no Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC).

Um pouco surpreendentemente, a intenção de Sarkozy foi recebida com compreensão pela generalidade dos 13 membros do Eurogrupo. A Eurolândia deu assim o benefício da dúvida ao chefe de Estado francês e fez vista grossa da derrapagem orçamental da França, país que deverá apresentar, em 2007, um défice de 2,5% do PIB, quando as previsões apontavam para 1,8%. Esta revisão em alta está, aliás, em notória contradição com o PEC, uma vez que este pacto impõe aos países que ainda não atingiram o equilíbrio orçamental uma redução do défice de pelo menos 0,5% anuais.

Para justificar o adiamento dos esforços de correcção orçamental, Sarkozy alegou necessitar de tempo para executar o seu programa de reformas, em particular o choque fiscal que prometeu aos franceses. O presidente gaulês parece não ter dúvidas de que a sua reforma tributária – cujo custo anual de 11 mil milhões de euros terá, certamente, um impacto negativo sobre o défice – vai trazer confiança aos agentes económicos e impulsionar o crescimento. Diminuindo consideravelmente os impostos directos e subindo o IVA, Sarkozy espera tornar o sistema fiscal mais competitivo e, assim, estimular o investimento.

Confesso que tenho simpatia pela postura “politicamente incorrecta” de Sarkozy em Bruxelas, pela sua sadia insolência face às regras do sacrossanto PEC e, sobretudo, pela sua determinação em revitalizar a economia francesa, mesmo que tal signifique contrariar o pensamento único monetarista. O chefe de Estado francês é pragmático e sabe baixar à economia real, ao contrário de muitos eurocratas que parecem vogar no éter da mais ortodoxa disciplina financeira. Neste sentido, a competitividade das empresas, o crescimento económico e o pleno emprego constituem os três grandes objectivos de Sarkozy, e não a robustez do euro ou a estabilidade dos preços preconizadas pelo Banco Central Europeu (BCE).

Não se trata de defender a expansão descontrolada do défice, como aliás o presidente francês fez questão de ressalvar, mas sim de ousar trilhar o caminho do reformismo. Tal como Bill Clinton na campanha presidencial de 1992, Sarkozy parece querer dizer, aos seus parceiros da Eurolândia e ao BCE, “é a economia, estúpidos!”. E este grito de alerta não deixa de ser irónico vindo de um país, a França, com uma forte tradição de intervenção estatal no tecido económico e uma costumeira tendência para criar entraves ao investimento, a partir da ideia quimérica de redistribuição da riqueza pela via dirigista.

De resto, Sarkozy tem dado outros sinais de que se preocupa com a economia real e de que vê nas empresas o melhor aliado para o crescimento. Ainda recentemente, o presidente francês comprometeu-se a lutar para que as PME europeias beneficiem de condições iguais às das suas congéneres norte-americanas. O governo dos EUA reserva 20% dos contratos públicos para as PME, naquilo que é designado por Small Business Act. E é este modelo que Sarkozy pretende importar para o seu país e para a UE, ainda que tal pretensão contrarie as regras da concorrência europeia.

Ainda neste âmbito, Sarkozy prometeu dar liberdade aos contribuintes sujeitos ao imposto sobre a riqueza para que invistam até 50 mil euros nas PME, sendo esse montante deduzido no valor tributado. E para aumentar a produtividade laboral e contornar a disparatada lei das 35 horas semanais de trabalho, o Governo francês isentou as empresas de encargos sociais e de impostos no pagamento das horas extraordinárias.

Pelos vistos, Sarkozy concorda com as recomendações expressas no livro “Besoin d’air” (em tradução livre “Necessidade de ar”), publicado este ano pela organização patronal francesa MEDEF (Mouvement des Entreprises de France), a partir de um debate envolvendo 50 000 empresários franceses. Recorde-se que, na referida obra, é dito que a França está a marcar passo no mundo globalizado, mercê da sua relutância em abandonar dogmas políticos como a universalidade do Estado Providência, os direitos sociais adquiridos, a intervenção estatal na economia, a elevada fiscalidade ou a rigidez do mercado laboral. Verifica-se, portanto, uma convergência no diagnóstico e nas medidas a aplicar à economia francesa entre os decisores políticos e a principal associação empresarial. O MEDEF alertou para a asfixia do tecido produtivo e o Governo francês parece, agora, compreender a urgência de oxigenar a economia antes que seja tarde demais.

Como se vê, Sarkozy e o governo liderado por François Fillon pretendem ser uma pedrada no charco em que se encontra a Europa. Ao introduzir políticas de promoção da competitividade fiscal, do investimento, da produtividade e do emprego, a França, a até aqui conservadora França, está agitar o “status quo” europeu e a lançar um saudável debate sobre a estratégia económica a seguir pela UE. Seria bom que Bruxelas e os Estados-membros não ignorassem a nova visão francesa, apesar desta não estar isenta de incongruências.

E em Portugal? Será que um dia a economia portuguesa vai deixar de estar refém da política orçamental? Será que ainda tarda a correcção orçamental pelo lado da despesa e não pelo lado da receita? É que não é só a economia francesa que precisa de “ar”. Por cá também se assiste à lenta asfixia do tecido produtivo, devido à elevada carga fiscal vigente. Até quando?

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