Opinião
Um ano
Também em Portugal, os acusados no processo «Casa Pia» (só para citar esse exemplo) já cumpriram - antes mesmo de serem julgados - mais do que a pena aplicada ao soldado norte-americano.
As penas aplicadas podem ser mais ou menos eficazes na promoção da Justiça ou na prevenção ao crime, mas há uma coisa em que não falham: são o elemento mais concreto de que se pode dispôr para se perceber a graduação de gravidade que um Estado atribui a cada um dos crimes previstos na Lei.
Foi nessa perspectiva que a notícia da condenação do soldado norte-americano, Jeremy Sivits, à pena máxima de um ano de prisão, por ter participado das cenas de humilhação e tortura de Abu Ghraib, me levou a fazer uma pesquisa. Dela extraí o seguinte:
Um ano de prisão foi a pena aplicada, em 1998, nos Estados Unidos, a Mike Tyson por ter agredido duas pessoas. Um ano de prisão é também a pena máxima a que está sujeita a cantora Courtney Love por, num espetáculo, ter atirado o pedestal do microfone contra a plateia e ter agredido duas pessoas. É também a pena máxima por envio de e-mails comerciais indesejados ou para quem grave filmes sem autorização dos autores. Kevin Mitnick, um dos mais famosos «hackers» do mundo, foi condenado a um ano de prisão por invasão de sistemas e furto de um software.
Também nos Estados Unidos, mas por posse de drogas, o trompetista Chet Baker foi condenado, em1958, à mesma pena. Um ano de prisão foi ainda a sentença aplicada em 1948 contra os «Dez de Holly-wood» (realizadores e argumentistas norte-americanos que se recusaram a colaborar com a comissão MCarthy) por «actividades anti-americanas».
Cerca de 600 pessoas estão, desde janeiro de 2002 (um ano e 5 meses além da pena imposta a Jeremy Sivits), na base militar norte-americana de Guantánamo, detidas «para interrogatório». Saindo dos Estados Unidos, rumo ao Brasil, verifica-se que, lá, quem se habilitar a penas inferiores a um ano de prisão pode entrar em acordo com o Ministério Público, que, por sua vez, pode abdicar da acusação em troca da prestação de serviços comunitários pelo acusado.
Se, por alguma razão, o soldado Jeremy Sivits resolvesse vir para Portugal, a condenação não poderia ser usada para lhe negar autorização de residência (só se, isoladamente ou somadas, as penas fossem além de um ano de prisão). E se, em Portugal, o soldado que torturou e humilhou presos no Iraque fosse a um jogo de futebol e atirasse algum objecto contra o relvado - toma! - arriscava-se a levar sentença igual: um ano de prisão. Também em Portugal, os acusados no processo «Casa Pia» (só para citar esse exemplo) já cumpriram - antes mesmo de serem julgados - mais do que a pena aplicada ao soldado norte americano.
Se o período de condenação fosse medida de periculosidade do condenado, teríamos que concluir que Jeremy Sivits é tão perigoso quanto o foi Mahatma Ghandi (também ele condenado a um ano de prisão por suas actividades subversivas), ou quanto São Francisco de Assis, que, na sequência das constantes escaramuças entre os de Assis e os de Perugia, passou um ano nos calabouços peruginos. E a lista dos condenados a um ano de prisão inclui ainda figuras como Rosa de Luxemburgo (por ter exortado os soldados alemães a não matarem proletários de outras nações); Émile Zola, por injuria no famoso «caso Dreyfus»; a cantora brasileira Rita Lee, por posse de drogas; e o nosso Camões, por, em 1551, ter ferido à espada Gonçalves Borges - moço das cavalariças do rei - foi escrever o primeiro canto d´Os Lusíadas nos calabouços do Tronco, onde passou um ano da sua vida.
E um ano é sempre um ano. Nem mais nem menos.