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05 de Dezembro de 2005 às 14:23

Tiveste as aulas todas?

Um dos meus filhos frequenta agora o sétimo ano. Depois de três anos de pré-escolar e de 4 de ensino básico num colégio privado, está desde o quinto numa escola pública. Estão bem um para o outro: ela, a escola, com boa reputação no meio; ele, aplicado, b

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Um dos meus filhos frequenta agora o sétimo ano. Depois de três anos de pré-escolar e de 4 de ensino básico num colégio privado, está desde o quinto numa escola pública. Estão bem um para o outro: ela, a escola, com boa reputação no meio; ele, aplicado, bom aluno, consciente dos seus deveres, vai figurando no "quadro de honra" da casa.

Há dias, fui uma vez mais buscá-lo no final das aulas. "Tiveste as aulas todas?" Não. Tinha faltado uma professora, mas um colega tinha sido chamado a substituí-la. "E o que é que fizeram nessa aula?" Com a sinceridade de um miúdo de 12 anos, a resposta foi lapidar: "Oh, nada. O professor chegou lá, disse que fizéssemos deveres ou então que jogássemos um jogo sem fazer barulho. Depois abriu uma revista e esteve a ler o tempo todo. É uma "seca", pai."

A breve viagem até casa continuou, a conversa foi correndo. Todavia, o relato do episódio incomodou-me. Não tinha gostado do que acabara de saber. Dias depois, o assunto das "aulas de substituição" tinha conquistado relevante estatuto mediático. Professores e sindicatos pegados com a Ministra, televisões e jornais atrás de tricas e contra-tricas.

A razão do meu incómodo em face da atitude daquele professor-substituto – percebi depois que essa é a regra nas ditas "aulas de substituição" – não se funda em preconceitos, nem contra professores, nem contra a Ministra – de quem aliás tenho a impressão de ser alguém que genuinamente está a tentar desenvolver um trabalho meritório e difícil. Afinal, em abstracto, eu também farei parte do "sistema".

Mas, embora leccione há dezoito anos na universidade, tal nunca me impediu de voluntariamente manter o distanciamento crítico necessário para aquilatar do que vai bem, e do que vai mal. Seguramente, se eu decidisse "abrir o livro", passaria a ser tratado como um pária entre os meus colegas. Talvez menos de um por cento dos docentes do ensino superior se revisse na leitura que faço do dito "sistema".

Na verdade, o relato do meu filho equivalerá à reacção de um dos meus alunos de licenciatura, fossem estes confrontados com a mesma situação. Porque aquela história é vivo testemunho de um profundo desrespeito para com a condição de estudante. De um modo geral, o que há de pior na atitude do professorado face aos alunos é transversal a todos os níveis de ensino, do básico ao superior, passando pelo secundário. Tenho mesmo a percepção de que o desvirtuamento dos deveres de ensinar, formar e educar se agrava à medida que progredimos para níveis de ensino mais avançados.

Genuinamente, apostamos pouco, muito pouco mesmo, na educação e formação dos nossos alunos. Na universidade, a carreira docente é avaliada em função de critérios estritamente científicos. Os fundos públicos acessíveis em programas educativos são exclusivamente aplicáveis em estudos e investigação, não no aperfeiçoamento de métodos e condições pedagógicas. A capacidade pedagógica, o esforço de ensinar, a qualidade das aulas e dos materiais de apoio são relegados para recôndito lugar nas aferições de desempenho. As escolas são avaliadas segundo critérios que premeiam publicações científicas de acordo com rácios de quantidade e (aparente) qualidade. Não em função da qualidade dos estudantes que formam, da sua integração no mercado de trabalho, ou segundo o mérito e o esforço exigido aos alunos.

No que até hoje pude assistir, nunca nenhum docente foi submetido a um crivo de aptidão pedagógica antes de se iniciar na leccionação. Erros genéticos perpetuam-se, vícios de raiz propagam-se ao longo de gerações. Tanto vale ser-se capaz de transmitir conhecimentos, como revelar a mais profunda inadaptação para a missão pedagógica.

Para alguns, leccionar em modo e tom ininteligível é sinónimo de poder e sapiência. Para outros, em minoria, transmitir em linguagem simples matérias intrinsecamente complexas marca toda a diferença.

Na escola, os alunos são um fardo que se é obrigado a "aturar". Dão sempre demasiado trabalho. A carga com aulas e correcções de exames é "pesadíssima". São anunciados horários de atendimento na média da hora-e-meia por semana para 50 ou 500 alunos, mas estes não são estimulados – muito menos invectivados – a comparecer a reuniões com os seus mestres. Provas orais, que deveriam ser sempre obrigatórias, são facilmente eliminadas dos regulamentos ou substituídas por expeditas "orais escritas".

As revisões de planos curriculares, resultantes de refregas intestinas entre capelas e interesses pessoais secundaríssimos, são operadas na base de jogos de pura semântica na designação de disciplinas. Em rigor, só num número muito reduzido de escolas se promove uma articulação minimamente cuidada dos conteúdos programáticos das várias disciplinas.

Os Conselhos Pedagógicos, controlados pelos professores - nada melhor que ensinar-se desde tenra idade que convém ser-se juiz em causa própria - são palcos de lamúrias que se esbatem na impotência de um sistema que não é capaz de penalizar a prevaricação, salvo em situações extremas de bradar aos céus. Em todo o lado, os "cromos" que animam o gozo dos estudantes permanecem de geração em geração, num sistema que, se premeia o mérito, também perpetua a incompetência crassa, o desleixo e a indiferença.

Os professores marimbam-se também para os métodos de estudo dos seus alunos. "Problema deles, não sou paizinho (mãezinha) deles." O culto do distanciamento impera, ditado por um sistema cujos pilares claramente secundarizam o que deveria ser prioritário: formar capital humano altamente qualificado. Em várias experiências por que passei, a vida tem-me ensinado que é possível fazermos verdadeiros "milagres" na formação de jovens por quem, à partida, apostaríamos pouco. Parafraseando Belmiro de Azevedo, se "um mau patrão faz um mau subordinado", um mau professor fará provavelmente muitos maus profissionais.

Vai para mais de dois anos, compareci a um jantar que os meus alunos organizaram por ocasião da "Queima". Colegas presentes contavam-se pelos dedos de uma mão. Quebrado o gelo inicial, acabei com cerca de uma dúzia de jovens à minha volta, em animada cavaqueira, até às duas da manhã, o restaurante a querer fechar portas. Se bem que muitos dos lamentos daqueles jovens se devam a inexperiências que só a vida permitirá compreender, não posso deixar de concordar que eles têm uma percepção muito clara do relativo abandono a que são votados pela escola.

"Só se não puder é que não porei os meus filhos a estudar no estrangeiro." A pouco e pouco, a frase tornou-se omnipresente nas conversas privadas. Embora à luz de uma experiência muito pessoal, eu consigo percebê-la bem. Por isso, face a tudo quanto vai dito, aquele professor-substituto jamais teria lugar no sistema de educação que eu gostaria de ver em Portugal.

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