Opinião
15 de Fevereiro de 2010 às 12:05
Repensar a estratégia de redução da pobreza
No ano passado, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação anunciou que o número de pessoas com fome no mundo tinha aumentado durante a última década. Em 2008, o Banco Mundial anunciou uma queda significativa do número de...
No ano passado, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação anunciou que o número de pessoas com fome no mundo tinha aumentado durante a última década. Em 2008, o Banco Mundial anunciou uma queda significativa do número de pessoas pobres face ao ano de 2005. Mas se a pobreza é definida em termos do dinheiro necessário para evitar a fome, como podemos conciliar estes dois anúncios?
De acordo com a linha de pobreza internacional "um dólar por dia" definida pelo Banco Mundial, que foi revista em 2005 para 1,25 dólares a preços de 2005, ainda existem 1,4 mil milhões de pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza. Em 1981 este número era de 1,9 mil milhões. No entanto, como grande parte desta redução ocorreu na China, em 2005 existiam mais 100 milhões de pessoas, do que em 1981, a viver na pobreza fora da China.
Na África Subsaariana e em algumas partes da Ásia, a pobreza e a fome continuam teimosamente elevadas. As agências internacionais estimam que mais de 100 milhões de pessoas passaram a viver abaixo do limiar de pobreza devido ao elevado preço dos alimentos durante 2007 e 2008. Devido à crise económica e financeira global de 2008-2009 mais 200 milhões de pessoas passaram a viver abaixo do limiar de pobreza. A recuperação do emprego continua a ser o principal desafio para a redução da pobreza durante os próximos anos.
Entretanto, as controvérsias sobre os cálculos continuam a levantar dúvidas sobre os progressos actuais. Como a Cimeira Social de 1995 adoptou uma definição mais alargada de pobreza, que inclui privação, exclusão social e falta de participação, a situação actual pode ser muito pior do que indica a linha de pobreza baseada no rendimento monetário.
A desigualdade parece ter vindo a aumentar nas últimas décadas ao nível internacional e na maioria dos países. Mais de 80% da população mundial vive em países onde as diferenças de rendimentos estão a aumentar. Os 40% mais pobres da população mundial representam apenas 5% do rendimento mundial, enquanto os 20% mais ricos representam 75%.
Os diversos dados sobre a redução da pobreza colocam em causa a eficácia dos planeamentos convencionais. Os países foram aconselhados a abandonar as suas estratégias de desenvolvimento a favor da globalização, da liberalização do mercado e da privatização. Em vez de provocarem o rápido crescimento sustentável e a estabilidade económica, estas políticas tornaram os países mais vulneráveis ao poder dos ricos e aos caprichos das finanças internacionais e da instabilidade global, que se tornou mais frequente devido à falta de regulação.
A lição mais importante é a necessidade de um rápido crescimento sustentado e de transformações económicas estruturais. Os Governos devem desempenhar um papel no desenvolvimento, com a implementação de políticas integradas definidas para apoiar o crescimento da produção e do emprego e para reduzir as desigualdades e fomentar a justiça social.
Este planeamento deve ser complementado com o investimento industrial e as políticas tecnológicas apropriadas e por serviços financeiros inclusivos definidos para os apoiar. Além disso, devem ser fomentadas novas capacidades de produção potencialmente viáveis mediante políticas complementares de desenvolvimento.
Pelo contrário, a insistência num Governo mínimo e a confiança no mercado levou a uma redução no investimento em infra-estruturas públicas, em particular na agricultura. Isto não só prejudicou o crescimento de longo prazo, como aumentou a insegurança alimentar.
Os defensores das políticas de liberalização económica sublinham o sucesso da rápida industrialização das economias da Ásia de Leste. Mas nenhuma destas economias seguiu uma liberalização económica total. Em vez disso, os Governos desempenharam um papel no desenvolvimento ao apoiar a industrialização, os serviços e a agricultura com maior valor e melhorar as capacidades tecnológicas e humanas.
As transformações estruturais devem promover o pleno emprego produtivo, bem como o trabalho decente, enquanto os Governos devem ter suficiente espaço político e orçamental que lhes permita desempenhar um papel activo e prestar uma protecção social universal adequada.
Nas últimas três décadas assistimos também ao divórcio entre as políticas sociais e as estratégias de desenvolvimento em consequência da tendência de reduzir a intervenção estatal. As estratégias de desenvolvimento económico nacionais foram substituídas por programas de redução da pobreza promovidos por doadores, como por exemplo, títulos de propriedade de terra, microcrédito e "marketing" "base da pirâmide" para os pobres.
Estas novidades não conseguiram reduzir a pobreza de forma significativa. Com isto não pretendo negar algumas consequências positivas. Por exemplo, os microcréditos permitiram a autonomia de milhões de mulheres, ao mesmo tempo que a concepção e implementação desses planos permitiu aprender importantes lições.
Entretanto, os programas sociais universais melhoraram o bem-estar humano muito mais do que os programas específicos e condicionais. No entanto, os programas condicionais de transferência de dinheiro têm sido relativamente bem sucedidos na melhoria de vários indicadores de desenvolvimento humano.
Infelizmente, a pobreza continua a ser endémica, com mais de mil milhões de pessoas a passarem fome todos os dias. São necessárias medidas urgentes. A recente crise económica e financeira, logo após a crise dos preços dos alimentos, anulou ainda mais os progressos feitos na redução da pobreza. Há também cada vez mais receios de que as alterações climáticas vão ameaçar a vida dos mais pobres.
O relatório bianual das Nações Unidas Report on the World Social Situation (RWSS 2010), com o título Repensar a Pobreza, defende uma nova concepção dos métodos de cálculo de medição da pobreza e dos meios para a reduzir. Para os pobres do mundo, o "business as usual" nunca foi uma opção aceitável. Tão pouco as tendências populares das últimas décadas demonstraram ser muito melhores. Não haverá uma erradicação real da pobreza sem um desenvolvimento económico sustentável e equitativo, que os mercados desregulados mostraram não conseguir alcançar.
Jomo Kwame Sundaram é assistente do Secretário-Geral das Nações Unidas para o desenvolvimento económico.
© Project Syndicate, 2010.
www.project-syndicate.org
Tradução: Ana Luísa Marques
De acordo com a linha de pobreza internacional "um dólar por dia" definida pelo Banco Mundial, que foi revista em 2005 para 1,25 dólares a preços de 2005, ainda existem 1,4 mil milhões de pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza. Em 1981 este número era de 1,9 mil milhões. No entanto, como grande parte desta redução ocorreu na China, em 2005 existiam mais 100 milhões de pessoas, do que em 1981, a viver na pobreza fora da China.
Entretanto, as controvérsias sobre os cálculos continuam a levantar dúvidas sobre os progressos actuais. Como a Cimeira Social de 1995 adoptou uma definição mais alargada de pobreza, que inclui privação, exclusão social e falta de participação, a situação actual pode ser muito pior do que indica a linha de pobreza baseada no rendimento monetário.
A desigualdade parece ter vindo a aumentar nas últimas décadas ao nível internacional e na maioria dos países. Mais de 80% da população mundial vive em países onde as diferenças de rendimentos estão a aumentar. Os 40% mais pobres da população mundial representam apenas 5% do rendimento mundial, enquanto os 20% mais ricos representam 75%.
Os diversos dados sobre a redução da pobreza colocam em causa a eficácia dos planeamentos convencionais. Os países foram aconselhados a abandonar as suas estratégias de desenvolvimento a favor da globalização, da liberalização do mercado e da privatização. Em vez de provocarem o rápido crescimento sustentável e a estabilidade económica, estas políticas tornaram os países mais vulneráveis ao poder dos ricos e aos caprichos das finanças internacionais e da instabilidade global, que se tornou mais frequente devido à falta de regulação.
A lição mais importante é a necessidade de um rápido crescimento sustentado e de transformações económicas estruturais. Os Governos devem desempenhar um papel no desenvolvimento, com a implementação de políticas integradas definidas para apoiar o crescimento da produção e do emprego e para reduzir as desigualdades e fomentar a justiça social.
Este planeamento deve ser complementado com o investimento industrial e as políticas tecnológicas apropriadas e por serviços financeiros inclusivos definidos para os apoiar. Além disso, devem ser fomentadas novas capacidades de produção potencialmente viáveis mediante políticas complementares de desenvolvimento.
Pelo contrário, a insistência num Governo mínimo e a confiança no mercado levou a uma redução no investimento em infra-estruturas públicas, em particular na agricultura. Isto não só prejudicou o crescimento de longo prazo, como aumentou a insegurança alimentar.
Os defensores das políticas de liberalização económica sublinham o sucesso da rápida industrialização das economias da Ásia de Leste. Mas nenhuma destas economias seguiu uma liberalização económica total. Em vez disso, os Governos desempenharam um papel no desenvolvimento ao apoiar a industrialização, os serviços e a agricultura com maior valor e melhorar as capacidades tecnológicas e humanas.
As transformações estruturais devem promover o pleno emprego produtivo, bem como o trabalho decente, enquanto os Governos devem ter suficiente espaço político e orçamental que lhes permita desempenhar um papel activo e prestar uma protecção social universal adequada.
Nas últimas três décadas assistimos também ao divórcio entre as políticas sociais e as estratégias de desenvolvimento em consequência da tendência de reduzir a intervenção estatal. As estratégias de desenvolvimento económico nacionais foram substituídas por programas de redução da pobreza promovidos por doadores, como por exemplo, títulos de propriedade de terra, microcrédito e "marketing" "base da pirâmide" para os pobres.
Estas novidades não conseguiram reduzir a pobreza de forma significativa. Com isto não pretendo negar algumas consequências positivas. Por exemplo, os microcréditos permitiram a autonomia de milhões de mulheres, ao mesmo tempo que a concepção e implementação desses planos permitiu aprender importantes lições.
Entretanto, os programas sociais universais melhoraram o bem-estar humano muito mais do que os programas específicos e condicionais. No entanto, os programas condicionais de transferência de dinheiro têm sido relativamente bem sucedidos na melhoria de vários indicadores de desenvolvimento humano.
Infelizmente, a pobreza continua a ser endémica, com mais de mil milhões de pessoas a passarem fome todos os dias. São necessárias medidas urgentes. A recente crise económica e financeira, logo após a crise dos preços dos alimentos, anulou ainda mais os progressos feitos na redução da pobreza. Há também cada vez mais receios de que as alterações climáticas vão ameaçar a vida dos mais pobres.
O relatório bianual das Nações Unidas Report on the World Social Situation (RWSS 2010), com o título Repensar a Pobreza, defende uma nova concepção dos métodos de cálculo de medição da pobreza e dos meios para a reduzir. Para os pobres do mundo, o "business as usual" nunca foi uma opção aceitável. Tão pouco as tendências populares das últimas décadas demonstraram ser muito melhores. Não haverá uma erradicação real da pobreza sem um desenvolvimento económico sustentável e equitativo, que os mercados desregulados mostraram não conseguir alcançar.
Jomo Kwame Sundaram é assistente do Secretário-Geral das Nações Unidas para o desenvolvimento económico.
© Project Syndicate, 2010.
www.project-syndicate.org
Tradução: Ana Luísa Marques
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