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16 de Março de 2006 às 13:59

Religiões do Estado

A religião que nos impõem como a oficial para a construção europeia, mas de que são culpados todos os Estados europeus na sua expressão, diz que se funda na democracia, na economia de mercado e no «acquis communautaire», como se cinquenta anos de uma (mar

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Vejamos qual o mito se conta hoje em dia às criancinhas. Há muito, muito tempo, quando os animais falavam (só o pretérito é injusto nesta expressão), os Estados eram associados a uma religião. Hoje em dia, graças em parte à Revolução Francesa, ou, para quem não gosta da França, a um conceito tão medieval e vago (e francês...) como a modernidade, já estamos livres desse primitivismo.

Como não acredito em histórias contadas a criancinhas, salvo alguma mais divina, gostaria de conduzir o leitor a um universo adulto onde podemos exercer mais livremente o nosso sentido crítico. Se bem virmos existem quatro posições possíveis na relação entre o Estado e a religião: a criação, a recepção, a expulsão e a segregação.

Vejamos cada uma destas hipóteses.

Os casos mais vibrantes para os amadores de curiosidades encontram-se nas situações em que foi o próprio Estado a criar a religião.

O caso mais conhecido é o de Amenófis IV, o celebre Akhenaton, herói romântico e revolucionário para uns, mero fanático e totalitário para outros, revolucionário intelectual e espiritual para uns, mero receptor de teologias antes estabelecidas para outros. Mas existem outros casos. Nabonides, sucessor indirecto de Nabucodonosor II, e último rei da Babilónia, tentou impor o culto de Sin, o deus Lua. Estávamos no século VI a. C. O imperador Juliano o Apóstata, no século IV d. C. tentou impor o culto do deus Sol, a que já Aureliano no século III tinha tentado dar forma, embora em moldes diversos.

Diversos são os casos das religiões de Estado. Estas não são geradas pelo Estado, mas recebidas por ele. Nas religiões de Estado o Estado é receptor de uma religião pré-existente. É o que se passa com o cristianismo na Europa. Mas igualmente com o comunismo. Quando existe uma religião do Estado é este a fonte depositária da religião. O decreto substitui-se à fé e a prática exemplar do soberano é o frágil penhor sobre que assenta. Sob o ponto de vista histórico, as religiões de Estado são o caso de maior e mais durável sucesso. A Europa recebendo o cristianismo ou os paganismos indo-europeus, os países turcófonos e arabófonos na sua maioria recebendo o Islão. Mas também entre os persas o mazdeísmo, o confucionismo da China, o hinduísmo (expressão equívoca se a há) da Índia e assim por diante.

Igualmente o ateísmo marxista nos países comunistas. A religião de Estado é sempre um fenómeno de recepção, não de criação.

A terceira possibilidade encontra-se na expulsão. A Europa expulsando judeus muçulmanos e pagãos ou pelo menos as suas crenças, a Turquia expulsando, convertendo à força, ou massacrando cristãos, a laica França expulsando o cristianismo de espaço público.

A quarta modalidade, menos visível, é a da segregação. Esta carece de algumas prevenções gerais.

Em primeiro lugar é preciso saber quando ocorre. A segregação ocorre, o Estado segrega uma religião, quando expulsa as religiões recebidas pelo próprio Estado.

Em segundo lugar há que saber porque ocorre.

Ocorre segregação porque não existe Estado sem religião, seja qual ela for. Historicamente tem-se verificado que, quando um Estado não cria uma religião, ou não a recebe, e porque tal acontece sempre após uma expulsão, ou recebe outra religião (o paganismo substituído pelo cristianismo na Europa, o cristianismo substituído pelo Islão na Turquia e países árabes, por exemplo), fica sempre um vazio. Se filosoficamente esta é uma necessidade nem o pretendo discutir agora. É um facto, sempre assim se verificou.

Ora este vazio é preenchido por uma segregação que pretende preencher o vácuo deixado na sustentação do Estado. Quando o Estado se diz livre de religião é sinal que vai começar a segregar uma.

Quais as características gerais de uma religião segregada?

A primeira é a de que é sempre uma religião que não diz o seu nome. Se a premissa formal é que o Estado é sem religião, o que dele se segregue passa a ter outro nome. Princípios gerais, finalidades, fundamentos.

Em segundo lugar é uma religião que tem medo das palavras. Cada palavra é pesada cautelosamente, não para exprimir as ideias essenciais, mas para não cair na fronteira religiosa.

Em terceiro lugar é por isso e sempre uma religião tartufa, vivendo clandestinamente mesmo quando aparece à luz do dia. Vive de negação no que é fundamental e por isso falha o alvo.

A religião que nos impõem como a oficial para a construção europeia, mas de que são culpados todos os Estados europeus na sua expressão, diz que se funda na democracia, na economia de mercado e no «acquis communautaire», como se cinquenta anos de uma (maravilhosa) construção técnica e apenas isso pudessem conformar milhares de anos uma construção substantiva da Europa.

Mas são estas as palavras correctas? Eu diria que não. Os três pilares sobre que assenta esta religião dos Estados, esta religião insidiosamente segredada, são bem diversos: o humanitarismo, os liberalismos e, em trajectória ascendente, a ecologia.

A primeira define o valor do homem, a segunda as relações entre eles, e a terceira as relações do homem com o mundo que o rodeia.

Analisarei posteriormente os vícios internos de cada um destes pés da religião do Estado na Europa.
Apenas me interessa agora avaliar as suas condições de sucesso.

Como disse a Europa funda-se no cristianismo no paganismo indo-europeu. Desde há dois mil anos a 700 anos consoante as regiões da Europa. Essa a substância da Europa.

Mas, pode-se afirmar, não é muito grave mentirmos um bocadinho, e fazer de conta que outros são os critérios. Ninguém levaria a mal.

O problema é que as religiões do Estado, tanto como as criadas pelo Estado, fracassaram sempre a longo prazo. São impotentes. Quando os soldados franceses entram na I Guerra Mundial, os laicos republicanos, furibundos com o «analfabetismo» dos soldados que iam para a guerra e voltavam às igrejas, e a pedir confessor, criaram um catecismo laico para sustentar os moribundos na hora da morte, os doentes na hora da doença. As orações cristãs foram substituídas por orações ditas laicas. Dá-se o caso de a Bíblia continuar por aqui, e de poucos sequer se lembrarem deste facto, quanto mais terem lido tais livros compostos de meros dislates.

Um Estado que nos pede para viver (e morrer) em nome de um Estado só porque é Estado, e porque se sustenta, segrega e protege valores de uma religião meramente segregada, é um Estado pouco poético, que serve para fazer negócios, mas não para dar o sangue, sentir amor profundo, ou dedicar uma vida. O Estado segregador é por isso um Estado com o qual se tem uma relação meramente comercial. Quer-se a nacionalidade europeia apenas porque dá benefícios, mas despreza-se a cultura europeia. Quer-se entrar na União Europeia apenas porque há interesse, mas não porque se quer participar num projecto.

Falharam sempre. Faliram. Neste caso o Estado molda-se pela religião, e a religião molda-se pelo Estado. Uma vida numa religião do Estado é sempre uma vida falida, vazia, impotente e meramente comercial. Há quem se satisfaça com isso. Diz mais sobre essa gente que sobre o que pode ser a Europa. Nem sempre o auto-retrato é obra-prima.

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