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27 de Setembro de 2005 às 20:43

Reconstruir do nada

O par de rosas sobra-lhe do mesmo braço que segura o boneco de peluche da filha, enquanto as duas sobem as escadas do avião, de regresso a casa, seja isso o que for. Virgínia Katiza só tem 40 anos, mas o conta-quilómetros da sua vida já parece ter dado vá

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O par de rosas sobra-lhe do mesmo braço que segura o boneco de peluche da filha, enquanto as duas sobem as escadas do avião, de regresso a casa, seja isso o que for. Virgínia Katiza só tem 40 anos, mas o conta-quilómetros da sua vida já parece ter dado várias voltas ao limite e regressado a zero.

Agora, os olhos desta ruandesa, pintam-se de "Kunezerwa" (felicidade) ao olharem para a Adília, no momento da tão ansiada despedida quanto, inesperadamente, dolorosa. Ali, na imensidão do aeroporto de Joanesburgo, entre os anúncios de partidas e de chegadas.

Adília de Sousa nasceu há 47 anos em Marco de Canavezes mas há 32 que vive na África do Sul, onde conheceu, se apaixonou e casou com o príncipe da sua vida. Um dos tais que tudo perdeu, no caos da independência de Moçambique, e recomeçou do zero, sem azedume.

Adília comove-se, de ternura, ao articular a resposta, quando lhe pergunto porque dedica a vida a ajudar mulheres e crianças, refugiadas de guerras em África:

– "Eu sei, o que é perder-se tudo e não ter ninguém a quem recorrer" – justifica a co-fundadora do abrigo de refugiadas "Bienvenue", em Bertrams, um dos bairros de Joanesburgo mais degradados e varridos por criminosos.

Desde a abertura do abrigo, em Janeiro de 2001, Katiza foi só uma das 470 mulheres e crianças que já ali recuperaram a esperança na vida.

"Só uma delas" – digo eu, como se as tragédias por cada uma aguilhoada, não bastassem para nos levar a todos ao desespero, tal o horror da respectiva história e da dor transportada.

Mulheres que foram violadas repetidamente ou deram o corpo a resmas de milícias, militares e outros, tornados donos de estradas e fronteiras pela força das armas, ou pela fraqueza, comparativa, de mulheres-mães, que assim compraram a sobrevivência dos filhos transportados.

Adília recolhe-as a vaguear nas ruas da cidade do ouro, ou chegam-lhe através de telefonemas de instituições que sabem haver ali, no "Bienvenue", uma porta sempre aberta.

Um oásis de redenção para todos nós, que lhes viramos a cara, escolhemos não ver nem ouvir, porque no nosso dia-a-dia não cabem os problemas dos outros. Como se o calvário destas mulheres e meninos nos fosse descartável.

Adília olha-as com um carinho sem-fim. Inventa todo o tempo do Mundo para as ouvir. As olhar de frente e reacender-lhes uma luz no final do túnel que as vinha devorando. Vai para as filas de ministérios lutar por autorizações de residência temporária, vistos de refugiados, mas quando volta, ao finar da tarde, o cansaço arredonda-se-lhe sempre em gestos de ternura.

Quando subo as escadas, vejo, na cozinha do albergue, uma negra de feições esfíngicas, a dar a volta a um enorme panelão, onde ferve papa de milho. A base do jantar daquele e dos outros dias.

"É a Emmerence!" – esclarece voluntariosa a Adília." É Congolesa? chegou aqui com cinco filhos, fugida da guerra, e é ela quem cozinha todos os dias, para todas as mulheres e meninos do lar!"

Ela, a Emmerence, benze-me com um olhar doce, sereno, e regressa aos pensamentos que lhe viajam nas voltas da colher de pau. Não diz uma palavra mas a tristeza daqueles olhos doces corta-nos alma adentro.

Palmilhou mais de três mil quilómetros desde as florestas do Congo, em busca de tecto e futuro para os seus cinco meninos, uma luz que se embaciaria quando o filho mais velho morreu atropelado, ao brincar na rua, frente ao "Bienvenue".

Mais abaixo no correr, fica o antigo quarto de Katiza. "Sabe... aquela senhora era como um alma perdida. Não falava com ninguém porque ninguém lhe entendia o dialecto. Um dia adoeceu e foi internada. Quando demos com ela já tinha sido mandada para um manicómio".

Katiza foi resgatada para o "Bienvenue" onde eventualmente, com o apoio das Nações Unidas, se conseguiu saber o paradeiro do pai e irmãos no Ruanda e organizar o repatriamento.

"Desde que soube que ia voltar a casa e ver a família nunca mais parou de sorrir" – recorda Adília." Ficámos felizes por ela se poder reunir aos seus mas, ao mesmo tempo, tristes por Katiza nos deixar. Ela já era parte da nossa família!".

Do fundo do corredor, chega-nos o chilrear de meninos que brincam como pardais, entre a sala de costura, onde as mães aprendem a fazer roupas, e a creche do lar, outras das "invenções" daqueles anjos na Terra.

Entre aquelas paredes casam-se o melhor dos seres humanos e experiências de arrepiar a alma. "Uma das situações que mais me magoou até hoje foi a de duas meninas, angolanas, que a mãe abandonou, fechadas num apartamento de Joanesburgo".

"Foi o choro das meninas que alertou os vizinhos e os levou a chamarem a polícia"- explica a portuguesa." Com o apoio das Nações Unidas já conseguimos dar com a família delas e estamos a ver se os conseguimos reunir".

Brilhos de esperança num breu de insanidade humana. De quem comete as barbáries. De quem lhes é conivente, ao virar a cara.

"O meu sonho é que todas estas mulheres encontrem um lugar na Terra onde sejam acolhidas sem discriminação, sem sofrimento. Possam educar seus filhos e ter uma vida digna" – confidencia-me Adília.

"Na minha forma de ver as coisas, a bagagem da mulher refugiada são os filhos a seu redor e, no meio da sua tragédia pessoal, poder olhar para eles com carinho, no fim de uma longa e dolorosa viagem".

"Adília!!... mamã!"...o chamamento ecoa nas paredes do lar, empurrado por uma voz de menina e Adília arredonda-se de ternura. "Eu já venho... pode ser? Vou só ver o que é preciso. Pode não ser nada mas, para elas, a vida reconstrói-se nesses nadas".

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