Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
20 de Abril de 2011 às 11:54

"Não reduzam o défice" diz o fantasma de Keynes

Em Junho de 1944, o fim da Segunda Guerra Mundial estava à vista e a Europa em ruínas e endividada.

  • 1
  • ...
Com o objectivo de desenhar um novo sistema monetário mundial, 730 delegados de 44 países encontraram-se em Bretton Woods nos Estados Unidos. Após duas semanas de negociações nascia o Fundo Monetário Internacional, o dólar tornava-se a moeda de referência e milhões fluíam para a Europa com o Plano Marshall. Desde então, o hotel onde J. Maynard Keynes e Harry Dexter White (o líder da delegação Americana) debateram tornou-se um local sagrado para peregrinações de economistas e políticos.

Em Abril de 2011, Bretton Woods mais uma vez ouviu planos para refazer o mundo dos escombros de uma crise global. O local mantém a dignidade e opulência de outra era: vitrais a reflectir o lume das enormes lareiras e varandas a observar as montanhas nevadas de New Hampshire. Aqui se juntaram mentes informadas sobre a situação económica mundial. O elenco incluiu importantes economistas, historiadores, jornalistas e reguladores. Entre as cabeças de cartaz estavam os antigos conselheiros de Obama: Larry Summers, e Paul Volcker; e o ex-primeiro ministro britânico, Gordon Brown. O promotor do encontro foi o bilionário húngaro George Soros que, no final de uma carreira a especular nos mercados, financia agora especulações em ciência económica, através do seu Institute for New Economic Thinking.

O consenso entre os presentes foi o de recusar soluções nacionais, seja expresso no plano de Brown de criar um compromisso global para o crescimento, seja na antecipação de um sistema cambial a três moedas: o Dólar, o Euro e o Yuan. Mas de desenhos institucionais à escala de um novo Fundo Monetário Internacional falou-se pouco. A atenção de todos estava sobre a disputa orçamental no Congresso Americano. Em quase unanimidade, os mais de duzentos economistas presentes rejeitam exigências de equilíbrio orçamental.

Um Estado pode sempre pagar as suas dívidas - foram as palavras de Soros. A dívida a temer é a privada, a que impõe falências e que desfaz o tecido de obrigações que forma uma economia. Os Bancos centrais do mundo inteiro entendem bem esta máxima. Desde 2008 que os bancos centrais disponibilizam liquidez a juro nulo para os bancos privados sanearem as suas contas e evitarem novos momentos de colapso. E como apontou Richard Koo, os bancos privados usam esta liquidez para substituir passivos de juro alto para nulo. A liquidez não vai impulsionar crédito ao investimento ou financiar as dívidas de Estados como o português porque os bancos procuram segurança ou juros exorbitantemente altos para compensar a incerteza. Juros que o Estado português com razão se deve recusar a pagar. Um Estado pode sempre pagar as suas dívidas, mas pode decidir não o fazer. Se eu falhar a prestação da hipoteca, levam-me a casa, passam-me uma multa, e se continuar a incumprir é caso de polícia. Não há polícia para Estados, e o FMI com as suas exigências só visita a convite e a nada obriga, encena um conveniente espectáculo de contrição para os mercados e de coerção para os cidadãos do país.

A única escolha perante esta "armadilha da liquidez" e a crise económica é mais despesa pública, mais défice, mais dívida pública. A maioria dos congressistas de Bretton Woods subscreviam este programa para os EUA. A situação Europeia é talvez um pouco diferente, mas só um pouco. Portugal aceitou transferir o seu banco central da Rua Francisco Ribeiro para a Kaiserstrasse. Com esta mudança o Estado português perdeu um pouco da sua soberania ao altar da independência do Banco Central Europeu, emancipado dos Estados e das suas exigências. Portugal não pode emitir moeda (e inflação) para cobrir a sua dívida. Os países representados em Bretton Woods em 1944 aceitaram uma restrição semelhante ao fixarem as suas moedas em paridade com o Dólar. Mas um elemento crucial nesse arranjo era o tácito compromisso da benevolência americana expresso em acordos e ajudas fiscais. Dita a lógica e a história que o Banco Central Europeu nasceu de um semelhante compromisso de solidariedade fiscal.

Bretton Woods foi escolhido para o congresso de 1944 a pedido de John Maynard Keynes que, após o seu primeiro ataque cardíaco, queria evitar o Verão de Washington, DC. Keynes teria um novo enfarte nas escadas do Hotel quando corria para uma reunião. Para o turista e para textos como este, contam-se estórias dos fantasmas de Keynes e da sua esposa bailarina em noctívagos passos de dança. Os economistas que entre as montanhas de Bretton Woods recusaram este mês o falso rigor do equilíbrio orçamental sabiam que o fantasma de Keynes estava com eles.


Historiador e Economista, Universidade de Duke, EUA
Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio