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03 de Agosto de 2005 às 13:59

Política internacional americana

O episódio da guerra do Iraque mostrou que vivemos numa época de manipulação histórica de estalinismo mediático, de um permanente rescrever da História, como George Orwell anunciava. Os inimigos vencedores tendem a apanhar tiques dos inimigos vencidos. E

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Os mongóis imitaram no século XII os seus inimigos turcos. Os cruzados responderam à guerra santa islâmica com uma guerra santa cristã. O Ocidente vencedor está a imitar muitos dos métodos estalinistas.

A guerra do Iraque far-se-ia por causa das armas de destruição de massa, do terrorismo, e disse o senhor Bush que não iriam fazer «nation building». Mas agora as ditas armas não aparecem, a ligação com o terrorismo não existe e afinal a intenção foi a de construir uma democracia no Iraque. Diz-se uma coisa e a sua contrária e a maioria engole o que lhe apetece.

A infantilidade não poupou nem os que eram a favor, nem os que eram contra a guerra, tanto os amigos da paz como os amigos dos americanos sofrem do mesmo infantilismo, seja por submissão, seja por revolta impotente. Quase todos se esqueceram de falar em dois conceitos essenciais para analisar a política internacional: poder e interesse. Que poder pretendem ganhar os americanos com esta guerra, que interesses visam proteger com ela? Quanto mais Maquiavel é usado em privado, menos aparece no espaço público.

Para analisarmos a questão temos de integrar o problema num quadro mais vasto, sob pena de termos de entender que a política americana é fruto de um conjunto de acidentes, desconexa, incoerente.
Vejamos por partes.

Os Estados Unidos fizeram um percurso relativamente clássico: começaram por ser uma potência agrícola, passaram a ser industrial, mais tarde financeira e agora são sobretudo uma potência militar, diplomática e simbólica (Hollywood e as séries de televisão são bom exemplo disso, mas também a CNN). Importadores líquidos de capitais e de produtos industriais resta-lhe só poder político e cultural.

Uma potência que o é sobretudo sob o ponto de vista económico tende a ser conservadora no sentido de Burke. Ou seja, respeitadora da sedimentação histórica, da identidade dos povos com que faz negócio. Os ingleses foram o melhor exemplo disso. Como não mexe com os valores dos povos, privilegia a estabilidade, a situação estabelecida. Uma potência que passa a ser meramente política passa a ser revolucionária. Ora é o que os Estados Unidos passaram a ser depois do fim da Guerra-fria: uma potência revolucionária, contra toda a sua tradição. Isto nada tem a ver com neoconservadores ou não. Já no tempo de Reagan se viram os primeiros sintomas disto, mas mais ainda no tempo de Clinton com os casos ECHELON e GEMPLUS. Os neoconservadores, antigos trotskistas em muitos casos, o que não deixa de ser significativo, apenas trouxeram para o governo americano uma ideologia e técnicas de revolução, mas não a sua inércia de movimento.

Primeira lição a retirar portanto: acabaram os EUA como potência conservadora, teremos durante muito tempo uma potência revolucionária. Uma das características das potências revolucionárias é o de fazer engenharia histórica, de querer mudar de raiz os fundamentos dos países. É que os EUA fazem no Iraque ao imporem a democracia, é o que pretendem fazer na Europa ao imporem a adesão da Turquia.

Segunda lição, os EUA estão obcecados com a China. Esquecem muitos que o primeiro acto do presidente Bush foi o do escândalo do avião espião americano na China, que simpaticamente os chineses devolveram aos pedaços. Os americanos perceberam que não podem enfrentar a China directamente e por isso tentam cercá-la. Por isso quem vê a actuação dos americanos em toda a Ásia Central e no Médio Oriente percebe que, como dizia o bispo católico de Bagdade, esta não foi uma guerra contra o Iraque. É uma guerra no Iraque, mas contra a Europa e a China. Como a China é dura, os Estados Unidos atacam o que é mole. Regimes orientais desacreditados e uma Europa dividida.

Os Estados Unidos não querem que a China seja o n.º 1 mundial. E estão dispostos a fazer tudo para o impedir. Mesmo que isso signifique enfraquecer a Europa para além do suportável, nomeadamente metendo a Turquia no seu seio. Mas pergunto: não seria melhor para os Estados Unidos terem a Europa como n.º 1 ou 2 e eles como n.º 1 ou 2 e a China n.º 3, do que se verem eles no dilema de serem n.º 1 ou 2 em competição com a China (sendo a Europa n.º 3 ou 4 com a Índia)? É que como aliados os europeus serão difíceis aliados, mas serão reais aliados, enquanto a China será concorrente ou mesmo inimiga.

Na sua obcecação apoiam os seus futuros inimigos como sempre fizeram. Apoiaram a URSS, depois a China depois os países islâmicos fundamentalistas árabes, agora apoiam países fundamentalistas turcos e turcófonos. Há uns anos atrás proibiam-nos de dizer que os talibãs eram criminosos. Eram mesmo vistos como heróis românticos. Hoje passa-se o mesmo com os fundamentalistas turcófonos. Não se pode falar neles. É politicamente incorrecto. Mas se há países em que tanto a população como as elites são profundamente anti-americanas, não apenas politicamente, mas civilizacionalmente é a Turquia. E no entanto continuam a apoiar a sua adesão à Europa.

Quarta lição, portanto. Cega pelo objectivo, a política americana, se revolucionária, actua por inércia de movimento, sem espírito crítico. Pôs-se uma máquina a funcionar, pagando a formação de opinion makers na Europa, de políticos europeus, formou-se uma longa máquina de propaganda que atravessa governos, universidades, institutos públicos, meios de comunicação social e vai ser difícil pôr essa máquina a fazer inversão de marcha. O monstro alimenta-se a si mesmo. E ainda que os americanos queiram mudar essa política, por perceberem o preço que pagarão por ela, terão dificuldades em fazer algo por a mudar.

O quinto aspecto da coisa tem a ver com a submissão da Europa. Tirando alguns corajosos como Louis Michel, na Bélgica, Bayrou e Allègre em França, Stoiber na Alemanha (cito desde socialistas a democratas cristãos) poucos se opõem consistentemente a este rolo compressor de forma consistente. Os que se opõem à política de poder americano em nome da paz são seus aliados objectivos ao quererem a Turquia na Europa, nomeadamente as esquerdas verdes e altermundialistas. Colaboram na dissolução do poder europeu em nome da dissolução de todos os poderes, não percebendo que só favorecem a política americana.

Esta submissão é um elemento essencial do problema. Rousseau dizia que o mistério da política não está no poder mas na obediência. E para eu saber onde há poder procuro sempre as causas da obediência, porque são elas que me mostram a consistência desse mesmo poder. A obediência da Europa tem a ver com três factores. Por um lado, o cansaço de História, que os neoconservadores americanos tanto salientam. A Europa anda cansada de participar na História. Mas esquece-se que esta postura não a torna imune a ela, mas apenas paciente da mesma. Dupla desgraça e sem glória. Em segundo lugar tem a ver com uma fractura comum da História europeia e mais que milenar. Na Europa a cultura elevada sempre foi muito superior à cultura média (Ortega Y Gassett foi quem melhor viu isto). Nos Estados Unidos, pelo contrário, há grande proximidade entre elas, entre Gershwin Charles Ives e Cole Porter, entre Hemingway e as séries B há muitas similitudes nas preocupações, na temática e mesmo no estilo. Na Europa não. E foi isso que fez sempre a imensa riqueza da cultura europeia. A Renascença e as Luzes que tanto são incensadas pelos cultores da modernidade são fenómenos anti-populares, impopulares mesmo, de uma cultura de elites que contesta o vulgo e o despreza. Todos os fenómenos libertadores na Europa contestaram o comum, o sedimentado. E entra aqui o terceiro factor, que Nietzsche bem analisou. Este desnível gera o ressentimento. Hostes de novos chegados aos poder económico, político, cultural percebem que nunca conseguirão aceder ao melhor da cultura europeia. Não sabem latim, grego, matemática, francês, italiano, psicologia, teologia, História que baste para tal. Ignoram as regras da etiqueta que formam o europeu e fazem da sua vida uma obra de arte. Por isso a forma de revolta manifesta-se seja por uma submissão aos americanos, paradigma mais fácil de seguir, seja à idolatria de culturas decadentes e rebaixadas orientais, por que menos exigentes para um europeu, que não é obrigado a segui-las na sua plenitude mais exigente.

Perante uma Europa que obedece e se revolta muitas vezes pela razões e com os efeitos errados, e uns Estados Unidos que perseguem uma política imperial suicidária porque destrói a fonte da sua civilização e o seu potencialmente principal aliado que ainda é a Europa temos dois ocidentes em deriva, em choque, ou seja em permanente oscilação. Os dois ocidentes enfrentam-se porque os americanos não querem ter aliados mas submissos. Pagarão o preço por isso enquanto não virem que é do seu interesse uma Europa realmente poderosa.

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