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27 de Janeiro de 2003 às 12:10

Pedro S. Guerreiro: «Relativização de Felgueiras»

O fascínio que se tem por Fátima Felgueiras é o mesmo que se tem pelo vilão medieval. Fátima popularizou-se e consegue através do discurso relativizar a única questão que é irrelativizável: a responsabilidade.

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Os escândalos sucedem-se sem precedentes na bonomia portuguesa do pós-soarismo. Na Judiciária, no futebol, nos orfanatos, nas autarquias, numa cadência que faz do esclarecido tonto e deste aquele. Fixemo-nos no caso de Fátima Felgueiras. Não porque seja melhor ou pior, mas porque serve a tese.

A presidente da Câmara da cidade que lhe dá a graça é uma heroína municipal, recebendo apoio popular de quem, mais do que presumindo-a justamente inocente até prova em contrário, já a absolveu de quaisquer actos menos lícitos que possa ter praticado. Porquê? Em teoria, poderia dizer-se que o sistema é de tal maneira corrupto que, perversamente, facilita a compreensão da corrupção avulsa das pessoas. Ou que quem fica satisfeito com os fins perdoa os meios utilizados – tivesse o Benfica conquistado as taças, teria Vale e Azevedo sido crucificado?

Os dois argumentos são verdadeiros. Mas não é por isso. O fascínio que se tem por Fátima Felgueiras é o mesmo que se tem pelo vilão, no sentido medieval. Como Robin dos Bosques, que rouba a ricos para dar a pobres. Fátima popularizou-se e, com o dom político típico do vilão, consegue através do discurso relativizar a única questão que é irrelativizável: a responsabilidade. A culpa, a existir, não morre solteira. Vive casada com a permanenente e idiota relativização da responsabilidade.

O Estado não pode ser Robin. Exige-se aos políticos responsabilidade e cumprimento do programa político para que foram eleitos. O exemplo de Felgueiras serve a tese porque nele se encontra um padrão extensível a Vale e Azevedo, a Pimenta Machado e a outros que eram culpados antes de serem detidos, ganhando depois absolvição popular precisamente por terem sido detidos. É uma questão de mentalidade, de um país que elege como temporários heróis populares o capitão Roby ou a Dona Branca.

A matriz para este poder de vitimização está documentada. Encontra-se na argentina Evita Perón, heroína do povo, com um opolulente gaurad fatos no palácio. E não é a nossa ministra das Finanças repetidamente caracterizada com traços quixotescos? Para ser herói, Guilherme Tell teve de disparar a seta e, portanto, ser um mau pai.

Não faltam vilões em Portugal. Quem se aproveite da nublosa distinção entre público e privado, da ignorância dos não esclarecidos. Ter-se gasto milhares de euros num referendo sobre a regionalização foi um paradoxo: como é que se pode pedir opinião sobre a mudança de um sistema que se não conhece? Quem sabe as competências do governo civil ou das juntas de freguesia? Quem sabe quem é que está a gerir o dinheiro de quem? Quem tem as competências para fazer o quê? Só percebendo isto é que poderemos deixar de julgar carácteres em vez de julgar competência e profissionalismo; de chamar arrogantes aos responsáveis.

O país não são os autarcas corruptos, os vilões enfarpelados ou Big Brother. O país é muito melhor do que isso.

Por Pedro S. Guerreiro

Artigo publicado no Jornal de Negocios

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