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Opinião
16 de Fevereiro de 2007 às 13:59

Os vencedores do referendo

O "sim" no referendo sobre a despenalização do aborto não constituiu uma vitória da Esquerda sobre a Direita. Foi a resposta cívica a uma obscenidade que a Igreja e as forças mais reaccionárias têm apoiado. Também não representou o triunfo "político" de J

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Será abusivo tentar extrair dividendos da singularidade do acontecimento, cuja natureza ultrapassa os axiomas tradicionais entre Esquerda e Direita, entre crentes e não crentes, entre adeptos "da vida" e adeptos "da morte".

Consistiu numa derrota parcial do Portugal velho, infligida, sobretudo, pelo Portugal novo, que vai despontando no horizonte fosco, ainda tingido pela ignorância, pela superstição, pelo analfabetismo e por abjectos manipuladores de consciências. Estes últimos foram, de facto, os grandes vencidos. A ira indisfarçada dos seus mais visíveis próceres demonstrou a face semioculta do jogo, no qual participou, com milhões de euros, o banco do Opus Dei.

Foi demonstrado que houve desobediência às instruções, veladas ou claras, dadas pela Igreja, sobretudo nas zonas urbanas e na parte do País onde a troca de informação e as características ideológicas são mais acentuadas. A faixa Norte corresponde à ruralidade e ao isolamento, denominadores comuns do enjaulamento cultural, em que o poder da Igreja ainda impede o questionamento do existente. As televisões forneceram reportagens inquietantes, denunciadoras da manipulação efectuada não só por abades do tipo Leal da Câmara, mas, também, por bispos que falavam de Deus sem demonstrar fé alguma, e de liberdade individual exigindo, no entanto, absoluta submissão às imposições das homilias. As reportagens apresentaram gente idosa, desguarnecida, analfabeta, a quem se não requeria a definição da responsabilidade pessoal mas, antes, se aplicava os mecanismos adequados à servidão. É este país desejado pela Igreja? Historicamente, assim tem sido. Todavia, as coisas estão a alterar-se. E, notoriamente, a Igreja a perder o futuro e a desembocar em múltiplas incertezas.

Não houve partidos vencedores. Mas houve uma violenta cisão entre católicos. E de um e de outro lado da dicotomia Esquerda-Direita registaram-se movimentos opostos, fenómeno mais do que evidente e que, no futuro, aumentará, atribuindo à sociedade diferentes sentidos. Um declarado gosto pela decisão própria, distante de ascendências, de pressões e de slogans caracterizou o referendo. E as declarações muito claras de Paula Teixeira da Cruz e de Vasco Rato cunharam, por exemplares, o debate, na veemente crítica aos modelos sociais absurdos, repelentes e obsoletos. Houve outras. Contudo, as mais vivas, alicerçadas em formas de razão e de fácil identificação com conceitos actuais, procederam de áreas habitualmente tidas como de Direita.

Outro facto novo fundou-se no conceito segundo o qual começa a ser considerado apropriada a mobilidade política, como criação social em permanente desenvolvimento e transformação. Nesse campo, o discurso da Esquerda foi a monótona e cautelosa repetição do anteriormente dito, com um léxico sem criatividade nem grandeza. Os jovens concentraram toda a energia na expansão e aperfeiçoamento das iniciativas em que se comprometeram, infiltrando a nossa taciturna existência social e despertando-nos para a transição que se adivinha. Designando a diversidade, os resultados do referendo garantiram que nela reside a mais sólida garantia de resistência ao velho, de expulsão do anacrónico. Estatisticamente, parece provado que uma tradição só se institui como valor no desapego de toda a anterior tradição.

Não me parece acertado, porém, considerar que os resultados da consulta popular vão criar, imediatamente, uma mentalidade "progressista". O indício foi o de que as noções canónicas não são intocáveis, e que se começa a reconsiderar (da parte de largo sector da juventude) o poder das posições de consciência. A coesão domesticada, assim como a uniformização artificial foram sacudidas pela ascensão de uma cultura individual, independente da orientação dos partidos e da escolástica da Igreja.

O VELHO ABUTRE

Um "documentário" exibido na RTP, terça-feira última, transformou-se no exaltado panegírico de Salazar, sob a manhosa aparência de "objectivo". O autor, Jaime Nogueira Pinto, é um homem astuto, mas não tão inteligente quanto. Ocultou, entre um rol de malignidades, que o ditador fascista destruiu a incipiente Escola de Matemática de Lisboa, perseguiu e homiziou gente da craveira dos profs. Ruy Luís Gomes, José Morgado, Aniceto Monteiro (criador da famosa Escola de Matemática da Argentina), Gustavo de Castro, Bento de Jesus Caraça, Manuel Valadares (que chegou a ser convidado por Albert Einstein para seu assistente), Mário Silva, Pulido Valente, Francisco Martins - a lista é inumerável. Está provado: Salazar deu ordens directas para o assassínio de Humberto Delgado. A bestialidade das torturas na polícia política era dele amplamente conhecida. Não houve família portuguesa que não tivesse um pai, um filho, um parente, um amigo, um companheiro na cadeia ou no exílio. A PIDE e, antes dela, as antecessoras com outro baptismo, possuíam fichas de quatro milhões e meio de portugueses, e dispunham de quase quatrocentos mil bufos. Eu próprio fui denunciado por um canalha, António Morais de Carvalho, redactor do jornal "A Voz" e chefe de Redacção do semanário monárquico "O Debate", além de procurador à Câmara Corporativa. Era amigo do meu Pai e conhecia-me de garoto. Pela delação recebeu a importância de 200 escudos. Vivemos, durante cinquenta anos, sequestrados pelo medo, pelo terror, pela brutalidade, sob o beneplácito da Igreja e as bênçãos do cardeal Cerejeira. Mesmo os recalcitrantes eclesiásticos, como D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, Abel Varzim, Padre Américo, Felicidade Alves, muitos mais outros, foram importunados. Salazar, culturalmente medíocre, balizou o País segundo a métrica da sua mediania. Foi o mesquinho na mesquinhez. É uma história medonha, impossível de esquecer apesar dos constantes branqueamentos com que inescrupulosos preopinantes tentam suavizar. Lembro, a propósito, um poema da grande Sophia de Mello Breyner, a que chamou "O Velho Abutre":

"O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas".

O poema, assim como outros, de incomparável beleza violenta, compô-los Sophia em 1962 ("Livro Sexto" - III "As Grades"), e constituem um corajoso protesto contra esse "tempo de silêncio e de mordaça", como ela o definiu. Relembrar a poetisa é não só homenagear uma extraordinária portuguesa, como recusar o apagamento da História. Sophia, a maior entre os maiores.


Rectificação
O título do artigo de Baptista-Bastos da semana passada era "Assassinar em nome de quê?" e não "Assinar em nome de quê?", como erradamente foi publicado. Ao autor e aos leitores as nossas desculpas. O texto pode ser lido em www.negocios.pt

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