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Opinião
26 de Abril de 2006 às 13:59

Os tremores da ecologia

O homem afasta-se da natureza não conceptual. Deixa de conviver diariamente com as vacas, os campos, as geadas. A seca já não lhe traz fome, o Inverno já não lhe traz frio. A chuva já não lhe enlameia os pés. O vírus mata-o menos vezes.

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Dizia eu há tempos que a religião do Estado europeu se compunha de humanitarismo, liberalismo e, com um papel ascendente, da ecologia. Tenho por isso analisar a fauna ecológica e o seu comportamento.

Que o ser humano tenha uma relação inevitável com a natureza é indiscutível. Mas sabendo nós que o conceito de natureza é dos mais insidiosos e escorregadios da nossa cultura europeia já tudo se complica quando queremos delimitar esta relação. Natureza pode ser um jardim, uma selva, um conjunto de calhaus, leis da física, pautas morais, uma metafísica, uma antropologia... a enunciação não tem fim. Por isso aquilo que aparece inequívoco é afinal construído. Quando se diz que existe uma relação inevitável com a natureza pode-se estar a dizer coisas muito diversas dependendo da natureza a que nos referimos e da relação que pretendemos ou conseguimos ter com ela.

As civilizações tendem a repetir-se, sobretudo quanto menos inteligentes se apresentam, e por isso a ecologia, a potência religiosa crescente, é em muitos aspectos uma repetição, tanto quanto uma inovação.

Em certos aspectos é uma construção que se baseia em condições novas. Nunca o poder do homem sobre a natureza foi tão grande e por isso nunca os danos que lhe pode fazer tão significativos. Nesse sentido a ecologia é uma efectiva necessidade e uma urgência. A antropologia descobre cada vez mais povos primitivos muito mais destruidores à sua escala da natureza, mas que a impotência torna irrelevantes.

Mas para além deste dado objectivo, a ecologia recolhe aspectos ideológicos e simbólicos que fazem dela uma religião. Nessa altura torna-se uma religião segregada pelo Estado e pelos Estados europeus e por isso potencialmente perigosa.

O primeiro elemento onde vai beber é a ciência. Fonte de legitimidade e de credibilidade, a ciência alimenta todas as religiões exóticas ou é usada oportunistamente por todas elas. Uns afirmam que o Corão previu fenómenos cosmológicos só descobertos pela ciência do século XX, outros que é o budismo que prenuncia a física quântica. Os textos são interpretados como bem se quer, mas os factos estão aí: a ciência actual é europeia na sua criação e alimentada de cristianismo e de paganismo indo-europeu. A ecologia religiosa faz o mesmo tráfico: usa e abusa de conceitos científicos para parasitar o prestígio da ciência. Como o cidadão comum, mesmo que nada saiba de ciência (e por isso mesmo), mal ouve a palavra científica passa a acreditar, a ecologia religiosa usa e abusa deste paradigma. São conhecidas as traduções falaciosas e mesmo falsas de compostos químicos de francês para inglês e vice-versa, que fazem de um produto anódino algo de perigoso. As projecções ambientais, as catastróficas bem como as apaziguantes, em que a discussão tem tudo menos de científico, pululam.

A segunda fonte vem-lhe da revolução industrial. O homem afasta-se da natureza não conceptual. Deixa de conviver diariamente com as vacas, os campos, as geadas. A seca já não lhe traz fome, o Inverno já não lhe traz frio. A chuva já não lhe enlameia os pés. O vírus mata-o menos vezes. A serpente morde muito menos frequentemente. A ecologia só se torna religião quando o mundo se torna confortável. Quando o homem convive directamente com a natureza, sem o amortecedor industrial, a natureza é benéfica mas cruel, mata, dá fome, doenças, destrói as colheitas.

Sei do que falo. Passei um sexto da minha infância no campo no Norte de Portugal. Lembro-me dos agricultores sofrendo com a geada que lhe destruía semanas de trabalho ou mesmo um ano de produção. De acordarem antes do sol raiar e irem trabalhar para os campos sob um céu húmido e frio. Para eles a natureza não era algo idílico que se podia ligar e desligar com um telecomando. Não tinham visto nem as montanhas alpinas, nem as flores de Caxemira nem a savana africana cheia de leõezinhos amorosos que se lambem uns aos outros. A natureza era dadora e ladra, uma cabra traidora, dura, exigente, que tinha de ser violada para dela se extrair algum pão. Para esta gente uma árvore é uma árvore, um animal um animal, uma pedra uma pedra.

A distorção da ecologia religiosa decorre da confluência deste dois factores. Para ela a natureza é um jardim auto-regulado que só é fruído pelo homem. O ecologista religioso casa-se assim muito bem com o liberal económico. Substitua-se mercado por natureza e Estado por civilização e vemos que o discurso é o mesmo. Uma situação auto-regulada, com momentos de crueldade inevitável, mas em suma passageiros, é abalada pelo papão Estado ou homem civilizado. É natural que o paradigma seja o mesmo. A vontade do homem é vilipendiada, porque se trata de gente sem capacidade de a exercer.

Isto compreende-se melhor analisando a fauna que constitui o ecologista religioso. Descendente muito recente de lavradores, sente o paraíso perdido da natureza. Esqueceu-se do desconforto, do efectivo desconforto da natureza. E sente-se em desconforto na civilização. Aproveita-se dos benefícios, mas não tem nela raízes bastantes para lhe beber o suco. É um ser meramente instalado. Os seus antepassados eram instalados na natureza, ele é instalado na civilização. Assim como os seus antepassados cobiçaram os palácios, ele agora cobiça uma natureza vista como jardim.

E encontramos aqui uma terceira fonte da ecologia religiosa. É cristã e pagã indo-europeia. A Idade de Ouro dos clássicos bem como o Éden, o paraíso (do persa, «jardim», facto tão significativo...) são o seu paradigma. Para se instalar no mundo precisa de sentir que existe um mundo melhor a que tem direito, porque se sente desconfortável neste (e com razão, quando olhamos para ele).

Qual o perfil deste ecologista religioso? É um homem à procura de legitimidade e parasita-a na ciência, afastado do seu ambiente natural, que não é a selva, mas o campo, mero objecto de instalação. Desconfia da vontade e teme a adversidade inerente ao mundo. Quer expulsá-la, proibi-la por decreto. No cômputo final acredita que a vontade do homem é mais maléfica que benéfica porque vem de uma longa genealogia de gente com vontade irrelevante.

Mas o projecto ecológico é ainda, apesar da sua fase ascendente, muito fragmentário. Por isso vai parasitar às outras religiões. Pensamento profundamente anti-humanista nas suas origens (muitos deles desembocam no nazismo e têm nele origem), precisa de ser temperado com a religião humanitária. O ecologista humanitário acaba por ser paladino do humanitarismo quando em boa verdade é um seu inimigo de origem. Vai parasitar igualmente ao liberalismo moral, quando este tem uma origem sobretudo aristocrática, e por isso lhe é contrário. Parasita igualmente o liberalismo político, porque lhe dá a liberdade de evangelizar.

Uma Europa que apenas vende esta tripla religião, contraditória nos seu próprios termos, o humanitarismo, os liberalismos e a ecologia religiosa é mais uma vez uma Europa em que tudo conspira para que seja destituída de identidade. Nenhum destas religiões gera uma identidade, nenhuma a diferencia do resto do mundo. O que têm de comum é o efeito e o ambiente em que germinam. A diluição é a sua palavra-chave. Como o ácido que descalcifica os ossos vão transformando a Europa numa estrutura mole, facilmente maleável e manipulável por terceiras potências. Sejam eles americanos, chineses ou turcos, irreleva. Viver num mundo esponjoso passa a ser entendido como natural, meritório até. Neste magma gelatinoso parece que todos os tremores são inócuos e por isso podem ser desconsiderados. Mas por debaixo se mantém a rocha dura onde assenta a Europa e esta é tão estável quanto convulsiva. E não terminou a época do mundo onde os seus tremores se farão ouvir. A Europa atrai. Mas atrai sobretudo pelos efeitos de religiões passadas e as suas realizações. Não por esta religião gelatinosa que se pretende instalar como paradigma do mundo. Fora assim seria o mundo turco e não europeu e em vez de Galileu alguma sonda espacial teria o nome de um janízaro.

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