Opinião
Os sonhos dos filhos
As palavras transpiravam do aparo, redondas, perfeitas, polidas como jóias. Como quem escreve, no fluir da respiração. O pai, Fernando, inebriava-se nos textos, nas prosas dele, descosendo-se menino naquela arte que lhe contrabandeara, alma adentro, cl
As palavras transpiravam do aparo, redondas, perfeitas, polidas como jóias. Como quem escreve, no fluir da respiração. O pai, Fernando, inebriava-se nos textos, nas prosas dele, descosendo-se menino naquela arte que lhe contrabandeara, alma adentro, clandestino, não fosse a mãe descobrir que o dinheiro contado, prás despesas, todos os meses sobradas, se sumira, outra vez, na compra de livros.
Depois da Independência, filho e pai iam ao jardim do Tunduru escutar o dizer de palavras feitas poemas, um ritual por aquelas bandas conhecido como Mshao. As "Tangerinas de Inhambane" de José Craveirinha bordavam pérolas entre sentidos e o coração, arrepiavam a pele, de tão perfeitas e sumarentas, doces que eram, para a nossa condição.
Fernando enrijecera, ele próprio, poeta mas de gestos e palavras medidos, na aspereza da Beira Baixa, onde se foi somando homem antes de se dividir entre o cá e lá. Africano.
O filho, esse, já nasceu no lá, abençoado pelos cheiros da palma, a água do Zambeze, e aqueles horizontes interiores sem muros, distijolados, paredes de adobe, barro precário, como aquele que somos nós.
Conheci o filho através da escrita, por ele debruada, semanalmente, em colunas do jornal. Naquele dia, eu levantava-me muito mais cedo e esperava pela abertura do quiosque, na certeza antecipada de, sugado que fosse o texto, teria renovado a minha fé no Mundo e nos homens. Não pelo formalismo do enredo, a actualidade noticiosa do tema ou o pedestal dos citados mas, exactamente, pelo oposto.
Porque, cada vez menos me interessa o papaguear partidário, governamental e dos respectivos analistas, seres estranhos que peroram milhares de caracteres, sobre personagens só diferenciáveis entre si pelo tempo da amnésia que os aflige.
Consoante estejam no governo ou fora dele.
O filho, do Fernando, devolvia-nos a humanidade, desatolando-nos os sentidos para as coisas simples, diferenciadoras entre o Sol e a penumbra que nos vai somando autistas. Prisioneiros de uma rede de solidão colectiva.
Alheios à dor alheia. Por isso mesmo, alheios a nós próprios.
E eu descobria-me a passar, cada vez mais, sobre sucessivas páginas de pensamentos doutos, paletas retóricas onde o visionarismo do pintor se esgota no arrolar de culpas, a terceiros, e no polir do próprio umbigo.
O filho, do Fernando, era por isso um ser estranho, extraterrestre. Extra, pelo menos, desta Terra que nos vai sepultando a capacidade de sonhar, de estender a mão, clientes do clientelismo, rotuladores, abutres da dor, piranhas famintas do latrinismo mediático.
Um dia, conheci o filho, do Fernando. Tinha barba e olhos de água verde. Um menino de alma com andaimes, físicos, de adulto. Agradeci-lhe as palavras-pérolas e perguntei-lhe em que ostras as encontra. As cultiva.
Ele baixou os olhos, tímido, como se o peso das minhas palavras fosse albarda excessiva. Desmerecida. Desproporcionada ao seu existir. E agradeceu o trocar de prendas. As minhas palavras, exdrúxulas, esganiçadas e pernilongas.
Druida de palavras, por ele recriadas, em sons, sabores e cheiros, o filho do Fernando culpou o pai, pelo seu pecado: "Vou-te contar uma história e tu, depois, decides se queres que seja verdade ou mentira. OK?"?e lá foi ele, às arrecuas no calendário, até aos dias de menino.
"Sabes? O meu pai sempre foi para mim, para nós, uma pessoa muito especial.
Diferente dos outros pais. Lembro-me que ele ia a pé buscar-me à escola e assim voltávamos prà casa, os dois, a andar na linha do caminho de ferro, que chegava da África do Sul carregado de minérios".
"Recordo-me que ele ia sempre com os olhos postos nas travessas, à procura de pedras caídas dos vagões e eu ficava ali, fascinado, a pensar que pai era aquele meu, sempre com tempo para, de olhos no chão, procurar os brilhos na terra, enquanto a maioria, mal via sequer onde pisava".
A voz do filho, do Fernando calou-se, com os olhos a brilhar na memória dos minérios do pai, eu insisti, sedento, na busca da magia: "E onde é que tu te inspiras, para criares aquelas imagens, aquelas palavras-feitiço?".
Ele arredondou o sorriso e atirou-me outra "mentira": "já sabes, acredita se quiseres. Mas a verdade é que só consigo escrever quando já todos dormem em casa e fica aquela paz, aquela serenidade.
Nessa altura, inspiro-me e escrevo nos sonhos dos meus filhos! É esse o segredo".