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Os pactos com o diabo

Dalton Trumbo foi uma das referências da minha juventude, e um dos momentos altos da dignidade humana. Considerado um dos melhores, senão o melhor dos argumentistas cinematográficos norte-americanos, foi perseguido, vexado e...

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Dalton Trumbo foi uma das referências da minha juventude, e um dos momentos altos da dignidade humana. Considerado um dos melhores, senão o melhor dos argumentistas cinematográficos norte-americanos, foi perseguido, vexado e vilipendiado pelo senador McCarthy, durante o longo período da "caça às bruxas." Há dias, o excelente João Lopes, na rubrica Cartaz, da SIC-Notícias, fez-me reviver o fausto dessa época de combate, ao referir o grande escritor, por ocasião do lançamento de um DVD, "Trumbo", filme de Peter Askin, sobre a vida do argumentista de, entre outros filmes, "Spartacus" e "Papillon." É um poderoso documento humano, e uma homenagem que se presta a um homem que nunca desistiu.

Adquiri o vídeo e reverti o olhar para um tempo em que tudo estava em jogo. Em 1947, ainda as hostilidades da II Grande Guerra Mundial estavam muito presentes na humanidade, Churchill proferiu um discurso apocalíptico em Fulton (EUA), no qual incluiu a frase famosa: "Em toda a Europa de Leste desceu uma cortina de ferro." A Guerra Fria começava. A histeria que se apoderou dos americanos é, hoje, inimaginável. A pulsão anticomunista foi habilmente manipulada pelos media, e uma onda de perseguição invadiu a sociedade norte-americana, com sequelas ainda hoje perceptíveis. O fenómeno Bush é disso outra dimensão do horror. O que prova que nenhuma democracia do mundo está isenta de ser letalmente atingida. A política do medo constitui uma característica da cultura média dos EUA. Basta ler os grandes autores, frequentar os grandes filmes, conhecer as grandes peças de teatro para nos apercebermos da "identidade instável" de um povo, cuja insegurança nasce da insegurança das classes dirigentes.

A Comissão de Actividades Antiamericanas desenvolveu a sua acção nefasta durante quase quinze anos. Foi presidida por Pernel Thomas, Richard Nixon e, de um modo mais persecutório e bestial pelo senador do Wisconsin, Joseph McCarthy, acolitado por uma assessor, Roy Cohn, homossexual que acossava, ferozmente, homossexuais e comunistas. A extensão das malfeitorias desta Comissão ainda hoje está por avaliar, na sua plenitude. O mundo cinematográfico foi um dos campos mais atingidos. Instigando à denúncia, implicando os grandes patrões dos estúdios no cultivo da suspeição e na aplicação de sanções, instalando um clima de terror, Hollywood foi sufocada. Os depoimentos eram filmados e transmitidos em directo pelas televisões. E se houve casos de impressionante coragem e honradez, numerosos foram os delatores. Muitos destes manifestaram-se voluntariamente, como Budd Schulberg, autor de um romance admirável, "Que Faz Correr Sammy?" (editado, em Portugal, pela Ulysseia, do saudoso Figueiredo Magalhães, em tradução exemplar de Francisco Mata).

Os mais célebres dos "resistentes", aqueles que se recusaram a denunciar os seus companheiros, apoiando-se na Constitiuição, ficaram conhecidos pel'Os Dez de Hollywood: Edward Dmytryk, Albert Maltz, Adrian Scott, John Howars Lawson, Ring Lardner Júnior, Alvah Bessie, Lester Cole, Samuel Ornitz, Herbert Biberman e Dalton Trumbo. Dmytryk, entretanto, mudou de agulha e denunciou dezenas de amigos, com razão ou sem ela, porque alguns deles nada tinham a ver com comunismo, apenas demonstravam convicções progressistas. Actores e actrizes houve que, igualmente, invocaram a Constituição em sua defesa e permaneceram calados: Howard da Silva, Humphrey Bogart (que chegou a participar em protestos públicos contra a Comissão e as suas arbitrariedades), Lewis Millestone, Gale Sondergaard, Arthur Miller, Jules Dassin, John Berry e Joseph Losey. Estes últimos, assim como Charles Chaplin, em risco de ser presos, tiveram de emigrar para a Europa.

Delatores célebres: Elia Kazan, cujo vergonhoso depoimento causou a desgraça de dezenas de famílias; Gary Cooper, Robert Taylor, Larry Parks, Sterling Hayden, Adolphe Menjou, José Ferrer, Robert Rossen e Frank Tuttle. O opróbrio perseguiu estes e outros mais homens, independentemente de alguns deles (Elia Kazan, por exemplo) ser um magistral artista. Porém, o mal que fizeram destruiu não só muitas famílias, liquidou amizades e provocou o suicídio de, pelo menos, quinze pessoas.

O poder do senador McCarthy era de tal monta que um historiador da época, Robert Griffith escreveu que "ele chegou a ter dois presidentes como reféns [Truman e Eisenhower], entre 1950 a 1954, que não podiam agir sem pesar as consequências dos seus actos sobre McCarthy e seus aliados." A atmosfera social e política nos Estados Unidos parece-me bem explícita nesta frase. E ela pesa sem contemplações ainda hoje, quando, anteontem, foi revelado que o sinistro Dick Cheney ordenou à CIA assassínios selectivos e deu o 'nihil obstat' à prática de torturas no conflito iraquiano.

Voltemos a Dalton Trumbo: o DVD é uma lição de história e uma clara referência às virtudes da decência e da honra. Ele e os seus sofreram, quase durante vinte anos, as consequências da coragem. As cartas que enviou a amigos e companheiros, lidas, entre outros, por Michael Douglas, Donald Sutherland, Brian Dennehy e Liam Neeson, entre outros, possuem a eloquência da humildade, ao mesmo tempo que não dissimulam o humor e a ironia. Eis um comovente documento humano que os melhores de nós deveriam resguardar na sua estante. De relevar, ainda, a declaração de Kirk Douglas, 90 anos, a voz dificultada pela trombose, mas imperiosa e emocionante: "Uma das coisas de que me orgulho, na minha vida, é ter chamado Dalton Trumbo" para escrever o argumento de 'Spartacus'."

"Trumbo", o filme e o homem que o filme homenageia, ensina-nos a desprezar aqueles que legitimam a delação, e que aceitam todos os pactos com o diabo.


b.bastos@netcabo.pt

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