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12 de Abril de 2006 às 13:59

Os liberalismos

Os liberalismos como religião dos Estados europeus e da construção europeia têm por isso como consequência rigidificar mais uma vez o momento histórico, dar como assente o que é mutável e como fundante o que é apenas mais um piso.

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Se há palavra mal usada e mal compreendida é a de liberalismo. Raras vezes vejo fazer distinções que me parecem importantes para saber o que tal signifique. Distingamos três acepções diversas: o liberalismo económico, o político e o moral. Têm significados diferentes, histórias diversas e, com frequência, consequências contraditórias entre si. Mas como são os fundamentos do Estado europeu, um dos pés das religiões geradas pelos Estados europeus, é necessário analisar qual o papel de cada um destas acepções na sua construção.

Os liberalismos, como todas as criações religiosas, são factos de minorias, de franjas da sociedade.

Para começar, o liberalismo moral. Este centra-se mais na vida privada das pessoas, afectiva, sexual, profissional, religiosa. O liberalismo moral é em grande medida criação dessa poderosa minoria, tão esquecida, mas fundamento da História da Europa, que se chama nobreza. É criação giróvaga e boémia, sem dúvida, mas disseminada sobretudo pela nobreza. Ainda no século XX em Proust se vê a grandeza do comportamento da rainha de Nápoles (supostamente a irmã da imperatriz Sissi) por confronto com a tacanhez moral da Sra. Verdurin. Sade, a corte de Luís XIV, dos Stuarts, as cortes italianas na Renascença, mostraram aspectos do experimentalismo moral que serviram de faróis para o liberalismo moral. De tudo se experimentou, até o amor no casamento.

O liberalismo político começa por ser um luxo de elites, mas nasce sobretudo com um cansaço e de uma desistência. Numa Europa cansada de guerras de religiões fez-se mais que o que costumam fazer os povos que não deixam nome para a História. Não fez surgir apenas a paz e a tolerância, mas igualmente a teorização da mesma, de onde se retiraram resultados práticos. O liberalismo político centrado na relação entre os homens e a sociedade que os rodeia, traz sempre a marca desta desistência e por isso teve grandes dificuldades para se impor como um valor positivo. Poucos nomes se podem citar entre grandes pensadores que tenham sido efectivamente liberais. No século XX tirando Ortega e Popper de poucos mais me lembro. Os restantes são apenas professores universitários e não grandes pensadores. É que o liberalismo, pela sua própria natureza, não se quer colorido.

O liberalismo económico tem História bem mais atribulada, talvez por ter uma História de maior ortodoxia. De todos é aquele para o que é mais fácil estabelecer uma genealogia de pensadores, a começar por Adam Smith até aos nossos dias. Como os epicuristas, seus antepassados, é o movimento que gera menos cismas graves, em que os pressupostos fundamentais são menos contestados, mesmo que as variantes possam ser muitas. O hedonismo parece unir bem mais os homens, embora os entusiasme menos e seja menos apto a criar grandeza de obra.

O problema dos liberalismos como religião do Estado reside no facto de ser um fundamento dos Estados europeus conflitual por natureza.

Em primeiro lugar conflituam-se entre si. Os liberais políticos viram com maus olhos o hedonismo dos liberais morais. Os liberais morais tenderam sempre a desprezar o liberalismo político porque burguês, tacanho, limitado. Se o liberalismo económico se associa com frequência ao liberalismo político nem sempre isso acontece. A China e o Chile em ditadura abraçam o liberalismo económico. A liberal (económica e politicamente) América e a Inglaterra victoriana são tudo menos liberais sob o ponto de vista moral. O liberalismo moral do Maio de 68 lidou bem com o anti-liberalismo político e económico. As combinações de conflitualidade possível são mais que muitas.

O primeiro problema com que se defronta uma Europa assente no liberalismo visto como religião é exactamente o seu suporte ser conflitual, sem congruência evidente e sem qualquer consistência por si mesmo. Existe uma coerência possível entre estes três liberalismos, mas tem de ser explicada e vivida. E para isso tem de começar a ser enunciada.

O segundo problema que resulta de a Europa se sustentar numa religião liberal, de os Estados europeus segregarem essa religião, resulta dos equívocos na própria expressão. Liberal para os americanos significa liberalismo moral, e em muitos casos é mal visto. Liberal para os europeus significa liberalismo económico, para ser igualmente mal visto. E do liberalismo político nunca se fala. Foi substituído pela palavra democracia, quando a democracia não basta sem liberalismo (político), assim como a ideia de economia de mercado não se sustém sem liberalismo (económico). É uma religião que omite os nomes dos seus deuses.

O terceiro problema reside no próprio estatuto religioso da religião segregada pelos Estados. Não apenas as palavras são substituídas por democracia, economia de mercado, desenvolvimento pessoal como se ficciona que os liberalismos nada têm de religioso. Ora a História tem mostrado que os liberalismos são vividos como fé. O económico, por exemplo. Quando perguntei a uma especialista sobre se a mudança para o euro não poderia trazer aumento de preços no retalho por criação de confusões nominais, a resposta que me deu foi que não. Perguntado sobre se havia algum estudo na matéria, foi-me que respondido que não. Disse nesse momento que então era apenas uma fé que a concorrência resolveria o problema. A pessoa em causa, honesta, teve de assentir. Tem-se fé que os mecanismos do mercado resolvam problemas mesmo que essa fé tenha limites. Sem retirar o mérito à concorrência como instrumental, sem recusar que talvez seja, como dizem os especialistas, o sistema que melhor se adequa aos modelos matemáticos, é mero instrumento. O liberalismo moral vê-se igualmente como religião, sem dizer o seu nome. A prova está no afã que na Europa os liberais têm em criticar permanentemente a Igreja Católica a propósito do preservativo, na moral sexual, por exemplo. Que lhes interessa isso? Que fixação é esta? Apenas se compreende caso se vejam como religião concorrente que pretende destronar o cristianismo.

O problema é que os liberalismos são filhos do cristianismo, tanto quanto do paganismo indo-europeu. Para fundamentar a liberdade pessoal, política ou (em parte) a económica, quando vemos os tópicos argumentativos, é no Evangelho que os vão buscar, ou como realização dos valores da cidade antiga, da polis. E mais uma vez hoje em dia recusam a sua filiação. Cristo nunca disse para respeitar os povos do Livro (e em parte talvez os mazdeístas), mas os restantes que sejam convertidos ou mortos. A liberdade matrimonial é uma luta liberal da igreja contra o pano de fundo social onde actua. E tanto como houve conversões forçadas, assim se ouvirão vozes da Igreja a condenar conversões sem convicção.

Os liberalismos são assim fraco sustento para uma identidade europeia. Correspondem a uma forma histórica de viver na Europa, delimitada no tempo, e apenas mais uma das formas de viver um dos seus conceitos fundamentais, o da liberdade. Conceito que nunca foi fundante das culturas asiáticas, seja turcas, seja árabes, seja chinesas (o caso indiano é bem diferente por razões compreensíveis) a liberdade, ou as liberdades, são um traço comum da cultura europeia. Os liberalismos são apenas uma das suas manifestações. Confundir o bodhisatva com o Buda, o avatar com o deus é distorcer as coisas. O anjo não é Deus.

Os liberalismos como religião dos Estados europeus e da construção europeia têm por isso como consequência rigidificar mais uma vez o momento histórico, dar como assente o que é mutável e como fundante o que é apenas mais um piso.

Evangelizar os outros povos em nome dos liberalismos, essa religião que foge mesmo a dizer os seus nomes, traz a falência a longo prazo. O homem, a liberdade e a natureza são temas fundantes da nossa cultura. O liberalismo junto ao humanitarismo e à ecologia são construções compósitas e sem nexo nem com capacidade de resistir à História.

Vêem os religiosos dos liberalismos os ditos como a última palavra da vida, o ponto onde a História se fecha. Querem em suma fechar a porta aos vindouros sob a capa da abertura. Economia de mercado, democracia como definidores da Europa mostram-se assim como meros sinais de miopia. Afastados das suas raízes tornam-se meras plantas decorativas. O problema dos liberalismos reside na sua ambivalência. A fronteira entre o entusiasmo e a desistência é frequentemente fosca. Parece ser esta a mensagem que queremos transmitir ao mundo. A de uma impotência fosca de uma religião de maldiz os seus nomes.

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