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Os homens lixo

Em 1996 editei um pequeno livro com o título desta crónica onde procurei reflectir sobre a exclusão nas sociedades desenvolvidas.

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Aí dizia que a realidade económica do nosso tempo tinha criado uma nova condição humana que estava para além da mera pobreza, assumindo características infra-humanas e de que os chamados sem abrigo são o exemplo mais flagrante.

Chamei-lhes homens lixo, não tanto porque vivem em condições deploráveis, tantas vezes em verdadeiras lixeiras, mas acima de tudo porque, tanto para o cidadão comum quanto para as entidades públicas, são encarados como detrito do sistema que se gostaria de varrer para bem longe. Daí a permanente perseguição policial, a interdição a certos espaços públicos, os internamentos forçados, a prisão. A horda de vagabundos, drogados, doentes e inadaptados que povoam as nossas cidades perturbam as consciências e estragam as vistas. Por isso toda a gente os escorraça, quantas vezes de maneira brutal.

Uma tal insensibilidade comunitária é sintoma da época mas sustenta-se na razão económica. Estes vadios não produzem nem consomem. E não fazendo parte de uma sociedade de produtores/consumidores não têm direitos nem voz. Na verdade estão abaixo dos cães e outros animais domésticos a quem são reservadas vastas áreas nas prateleiras dos supermercados e muitas lojas especializadas nos centros comerciais. Um cão doméstico é um pequeno motor da economia. Para ele produz-se comida enlatada, artigos de higiene, vestuário, adereços e muitos serviços, desde cabeleireiros a veterinários. Os animais domésticos geram milhões e uma indústria sólida.

Pelo contrário, exceptuando as instituições de caridade, cuja natureza é essencialmente não-económica ou, se se preferir, onde a economia reverte para o funcionamento da própria instituição, o sem abrigo não gera nenhuma actividade económica digna de registo. Não se produz comida para vadios, abrigos temporários ou roupa apropriada e dos serviços só se conhece a repressão que é geral na missão das polícias. Daí a condição tão desprezível dos sem abrigo na escala social. Cujo paralelo só encontro na imagem, algo cinematográfica é certo, do leproso medieval.

Vem isto a propósito do chamado «caso Gisberta». O sem abrigo morto por um grupo de jovens com particulares requintes de malvadez. Apesar da gravidade dos factos, jovens, alunos de uma instituição católica, tortura continuada durante dois dias, violação colectiva e por fim despejo do corpo para um buraco imundo, o país não está nada comovido. Ao contrário de outros assuntos que tantas vezes excitam os portugueses até os levar ao rubro, e não falo só de futebol, mas por exemplo o desaparecimento da Joana no Algarve ou um incêndio florestal mais intenso, este caso não tem suscitado grande interesse. A notícia já anda pelo rodapé e a tendência para a desculpabilização faz doutrina. A começar pelo Ministério Público que considera que não houve intenção de matar e desvaloriza o assunto. Pede alguns meses de castigo em regime aberto, ou seja, o mesmo que roubar um chocolate na loja da esquina.

Tamanha indiferença social perante um acto tão abominável só se pode explicar pela condição da vítima. Sem abrigo, homossexual e estrangeiro, Gisberta era o pária absoluto, o lixo social, sem nenhum direito, nem dignidade. Por isso os rapazes o trataram como uma mosca a que se habituaram a arrancar as asas e agora a sociedade portuguesa, no seu conjunto, encara o caso como uma maçada, uma nódoa na toalha que é preciso limpar e esquecer depressa. Nem a forte indignação internacional comove as entidades públicas, a classe política e os portugueses em geral.

Sempre pensei, e escrevi, que o Portugal dos bons costumes esconde um vulcão social que pode rebentar a qualquer momento. Apesar da Europa e dos milhões por cá despejados, do ponto de vista humano o país continua a ser habitado por gente muito bárbara, sem educação ou civismo, onde maltratar uma criança é um dever patriota segundo o Supremo Tribunal de Justiça, espancar a mulher é um assunto privado para a polícia, conduzir como um assassino é ser um herói entre os amigos, torturar touros é arte para as televisões, chacinar indefesos animais é um desporto para as elites e cortar árvores um prazer para todos, mas com particular gozo para os autarcas. A cultura do povo humilde continua resumida ao chouriço, ranchos folclóricos e brejeirice do humor televisivo, enquanto os ricos nunca passaram do nível das jantes de liga leve e do pindérico jet7.

Por muito que se diga que o drama de Portugal está na baixa produtividade e no alto défice, a verdade é que o problema de fundo reside no primitivismo civilizacional da nossa sociedade. As décadas vão passando, as gerações vão-se sucedendo e os portugueses continuam genericamente brutos. As excepções só confirmando aquilo que é vasto e resiliente. Neste contexto, de facto, que importância tem assassinar um homem lixo, mesmo de forma tão selvagem? Olhem, é menos um a pedir uma moedinha.

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