Opinião
Os catadores de subsídios
Neste país, afinal, no discurso político, e na crítica dos media, importa, apenas e só, quanto se gasta, não como se gasta. É o eterno e enraizado primado da quantidade sobre a qualidade.
Julgo não cometer um crime de lesa-majestade ao associar-me aos que, em surdina ou de voz aberta, apontam a generalizada má afectação de dinheiros públicos destinados a iniciativas supostamente empreendedoras, supostamente meritórias, supostamente reestruturantes, supostamente geradoras de talento e conhecimento, supostamente indutoras disto & daquilo e de tudo um pouco que possa ser visto como virtuoso: qualidade, competitividade, qualificação, produtividade, etc. etc.
Trate-se de dinheiros «sacados» a custo do Orçamento do Estado português, trate-se de fundos comunitários – por sua vez «sacados» aos contribuintes da «Europa dos ricos» –, facto é que essa percepção se vai generalizando e cristalizando. Com um terceiro Quadro Comunitário de Apoio (QCA III) em plena execução, e um QCA IV cuja preparação prossegue já no contexto de uma «União Europeia pós-alargamento», justificar-se-á, uma vez mais, dizê-lo: «O Rei Vai Nú.»
Disso prova, em Portugal tornou-se vulgar a aturada busca e exibição de «casos de sucesso». Gestores e sócios de micro, pequenas e médias empresas, responsáveis por centros de investigação universitários e institutos tecnológicos são, aqui e ali, a capa das revistas da especialidade. Sem negar as evidências, o panorama global é, porém, absolutamente confrangedor.
Uma larga fatia dessas entidades beneficiou, ou continua a beneficiar ainda, de programas comunitários acompanhados de grossas fatias de subsídios a fundo perdido. Subsídios para investimento; subsídios para formação e qualificação de recursos humanos; subsídios para cobertura selectiva de custos de exploração; subsídios para actividades de I&D. Porém, em cada 10 casos, talvez um ou dois constituam «casos de sucesso» que até nem envergonhem. Convenhamos que tais percentagens são, além de irrisórias, reveladoras de que algo vai Muito Mal neste Reino da Subsidiação.
São milhares de milhões de euros, centenas de milhões de contos, de dinheiros públicos de duvidosa reprodutividade. Uma imensa riqueza depauperada, destrutivamente transferida em benefício de alguém: os catadores de subsídios. Parafraseando Lavoisier, no Reino da Subsidiação nada se cria, nada se perde: tudo se transfere. De bolso para bolso. De conta bancária a conta bancária.
Estão em toda a parte. Eles são empresários dinâmicos e empreendedores, ilustres professores da cátedra universitária, cientistas de telejornal, responsáveis por centros de investigação, administradores de institutos do Estado, sem excepção posicionados entre o que vulgarmente se apelida de «nata» da nossa «massa cinzenta». Homens de fato a rigor (ou talvez não), apressados e sempre quinze minutos atrasados, frequentadores insistentes dos bastidores do poder e com quotas de dois dígitos nos índices de desgaste das alcatifas de pêlo alto de muitos gabinetes ministeriais. É uma ampla e densa rede de interesses, que não se sabe onde começa nem onde termina, com intersecções infinitas que desafiam qualquer tentativa de entendimento lógico. E que, entretanto, passou a envolver a banca, consultores internacionais de estratégia, auditores ou multinacionais interessadas em joint-ventures com um país em que abunda o dinheiro barato e de acesso fácil.
A causa essencial, bem conhecida de há muito, subsiste. Ganhou crosta com o tempo. Tudo leva a crer que, para nossa desgraça, sobreviverá perenemente. Na verdade, a generalidade das políticas públicas em que a subsidiação é instrumental assenta numa constatação bem perversa: as suas linhas gerais e medidas são definidas em função dos interesses e das conveniências dos beneficiários potenciais. Não em função de qualquer genuíno interesse público. Não em função de critérios de efectiva exigência. Não com fundamento em requisitos de mérito. Mas, antes, à luz do denominado princípio da captura do regulador (as entidades decisoras) pelos regulados (os beneficiários).
É o departamento universitário que precisa de uns dinheiros para equipamento, pagar a pessoal ou comprar consumíveis de economato e parte à cata de um subsídio. É a empresa que quer uns cobres para comprar equipamentos de que nunca saberá extrair o devido partido, e a quem nunca serão pedidas contas. É a Câmara Municipal que, em cata de votos, também cata o subsídio para uma rotunda, um pavilhão gimnodesportivo ou uma ETAR, que ulteriormente terá que encerrar por incapacidade de suportar encargos correntes de funcionamento. É a agência pública que, associando uns tantos parceiros carecidos de uns cobres, promove um projecto de cooperação em rede de fomento do desenvolvimento tecnológico, & pá-tá-ti & pá-tá-tá... e lá saca mais uns milhões para um projecto aberrante e sem nexo. A todos, a característica comum: uma lógica de actuação predadora, através da qual a vítima é sugada até restar exangue, sendo então abandonada em busca de novo alvo. Quanto maior, melhor.
O subsídio, para ser alcançado, implica que algo se faça: por exemplo um estudo, ou a realização de certas actividades. Faz-se o estudo, montam-se, nem que «pintadas», essas actividades. É a lógica da oferta: subsidia-se para produzir, não para vender. É que vender implica uma procura genuína, um interesse real, a utilidade implícita numa necessidade a satisfazer. Creio bem que mais de 90 por cento dos dinheiros a fundo perdido que universidades e centros de investigação consomem não vêm suprir qualquer utilidade, salvo a dos bolsos onde acabarão por cair.
Será de estranhar? Julgo que não. É que, a montante, no plano do poder político, é o discurso do Ministro, ou do Secretário de Estado, carregado de taxas de execução, de montantes gastos (delapidados), de percentagens do PIB. Neste país, afinal, no discurso político, e na crítica dos media, importa, apenas e só, quanto se gasta, não como se gasta. É o eterno e enraizado primado da quantidade sobre a qualidade.
Gasta-se pouco em I&D? Há que gastar mais. Gaste-se, para evitar a vergonha de nos quedarmos pela cauda de um qualquer ranking. O aproveitamento escolar é baixo? Passem-se os alunos administrativamente, decrete-se o fim das reprovações. O abandono precoce de licenciaturas é escandaloso? Encurte-se a sua duração. Vai sobrar dinheiro no orçamento? Gaste-se, gaste- se, gaste-se, antes que seja tarde! Mas... gaste-se!
Há tempos, nesta coluna escrevi, em título: «Quanto estiver pronto, Portugal há-de ser um grande país.» Mas, assim, não, Portugal não irá lá. Não vejo, nos lugares de decisão próprios, os propósitos certos, a coragem e determinação necessárias para quebrar pela espinha, doa a quem doer, essa perversa, destrutiva e castrante rede de catadores de subsídios. Nem vejo o poder preocupado com isso. Até porque o discurso em prol da anti-subsídio-dependência sai, em regra, da boca dos que alimentam essa mesma rede. Tudo se resume a uma questão de semântica, e o português é, todos o sabemos, uma língua muito traiçoeira.