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Opinião
07 de Novembro de 2008 às 13:00

O progresso e a naftalina

Em 1927, Al Jolson pintou a cara de negro para ser "O cantor de Jazz", o primeiro filme sonoro norte-americano. O enredo era inverosímil, mas nada se comparava ao absurdo de colocar um branco a fazer de preto. Preto, nos Estados Unidos, estava impedido praticamente de tudo, menos de ser espancado, humilhado, vexado, desprezado.

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Quarenta anos mais tarde, Stanley Kramer realizou "Adivinha quem vem jantar?", filme no qual o negríssimo Sidney Poitier beijava uma alvíssima Katharine Houghton. Este terrível requisitório contra o preconceito racial foi perseguido, proibido de ser exibido em numerosos Estados americanos, alvo de artigos sulfúricos assinados pelos mais cotados comentadores de Direita, um dos quais, Clark Silverston, invocava a purificação das labaredas para a película, o seu realizador e todos os seus intérpretes, entre os quais Spencer Tracy e Katherine Hepburn.

Hollywood vivia, ainda, sob o que restava do Código Hayes, um documento regulador do que devia e não devia ser filmado. Georges Sadoul, o grande historiador e ensaísta cinematográfico francês, conta, em "Le Cinéma", a incongruência das medidas restritivas contidas no Código. Claro que a inclusão de negros era severamente vigiada, e apenas permitida em circunstâncias muito especiais: pertenceriam, sempre, às classes mais inferiores. A infâmia do documento representa, afinal, a imagem da sociedade, cuja hipocrisia, provincianismo e conservadorismo religioso constituíam fortes elementos. Eis um dos itens: "O nu completo não é admitido, em hipótese alguma. A proibição é, também, para o nu de perfil e toda a visão licenciosa de personagens do filme. É igualmente proibido mostrar órgãos genitais de crianças, inclusive de recém-nascidos. Órgãos genitais masculinos não devem sobressair. Caso um tema histórico exija uma calça justa, a forma característica dos órgãos genitais deve ser suprimida, na medida do possível. Os órgãos genitais da mulher não devem aparecer, nem como sombra, nem como sulco. Toda a alusão ao sistema capilar, inclusive as axilas, está proibida."

O puritanismo desabusado desta América moldou-lhe o perfil e estruturou-lhe a alma. Há trinta anos, um negro tinha de se sentar nos fundos dos autocarros. Um miúdo, em Alabama, foi assassinado a tiro, porque assobiara à passagem de uma rapariga branca. Um grande jornalista português, J.M. Boavida-Portugal, natural de Porto de Mós, na altura subchefe da redacção de "O Século", foi aos Estados Unidos, a convite do Departamento de Estado. Era um homem extremamente afável, de tez escura, e grande apreciador da grande nação e da sua cultura. Não o deixaram entrar num hotel de primeira, e as autoridades tiveram de encontrar uma solução intermédia para o seu convidado, instalando-o numa espécie de pensão mexicana.

Todos nós sabemos de casos aberrantes, que mancham de opróbrio o imenso país. O nascimento do macartismo não foi o menor, nem o último dos males. Mas a América do Norte dispõe de energias, igualmente poderosas, que colmatam situações de escândalo. E o cinema tem contribuído, com eficácia persistente, para que os direitos e deveres sejam iguais entre as raças.

Eis porque a vitória de Barak Obama, saudada em todo o mundo pelas forças do progresso e do futuro, é muito mais do que um episódio singular. Ela representa o embate entre o antigo e o moderno, entre o passado e o devir. E, também, o ânimo de um homem que parece ter tudo contra si e, de repente, incarna a História, desafia-a e às suas influências ocultas, arrasta consigo uma avassaladora onda de juventude e fornece ao mundo um novo perfil de sonho.

Segui, com emoção, as transmissões da CNN e da Sky: escutei os comentadores e aduzi as razões deles às minhas próprias razões. E, fazendo "zapingue", lá dei com aquelas figuras do Eça de Queiroz, numa coisa chamada Quadratura do Círculo, que me pareceu uma manifestação de sonambulismo. O Pacheco Pereira está cada vez mais parecido com o Pacheco Pereira: enfatuado, soberbo, exibindo uma aura de superioridade inteiramente aceite pelos outros. O António Lobo Xavier não é um comentador: é um modelo do Rosa & Teixeira. Dizem-me que é bom chefe de família; eu recordo-o a entoar, apopléctico de gozo, o sambinha "É o bicho, é o bicho!", acompanhando-o com lascivos gestos corporais. Quem pode tomar a sério um cavalheiro assim? O António Costa, é o Costa que há, o Costa que existe, o Costa que o PS tem. O Carlos Andrade foi um jornalista respeitável e até estimável. Falo por mim. Agora, rabeja uma espécie de malícia incompreensível. Não modera: é sacudido. Faz o que pode. E o que pode é muito pouco. O que aquela gente disse, sobre Obama e as eleições americanas, é de bradar aos céus. Nos tempos em que havia chefes de redacção e não editores executivos, qualquer deles ia, durante meses, atender telefonemas, na perspectiva de que seriam aproveitáveis. É uma gente cheia de naftalina, irritada com a marcha das coisas, rangendo os dentes porque julgaram invencíveis as teses que defendiam.

Evidentemente, a vitória de Barak Obama nada tem a ver com o socialismo. Mesmo o cumprimento das promessas vai-lhe ser difícil. Porém, a dinâmica é outra, porque a origem diferente. Como ele disse: "Não possuo status. A minha formação veio do afecto e do amor." Há muitos anos que não ouvíamos um político dizer coisas tão simples e tão maravilhosas como estas.

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