Opinião
O preço da indiferença
Num Mundo onde as crianças deveriam ser a primeira prioridade de defesa e carinho de cada adulto e dos Estados, esta é uma tragédia que nos toca directamente a todos e como tal nos deveria roubar o sono.
O corpo da menina foi encontrado entre uns arbustos, junto ao monte de desperdícios de uma mina de ouro, nos arredores de Joanesburgo.
Na véspera, Tina vendia roupas usadas na baixa da cidade do Ouro, com a tia e uma prima, quando um homem lhes propôs uma troca; dois telemóveis (que disse guardar num apartamento) por algumas calças e camisas.
Tina seguiu-o. A prima ainda lhes acompanhou os passos mas, a certa altura, inverteu marcha e regressou à banca, junto ao pilar de cimento do viaduto, onde a mãe procurava alívio às contas da casa.
A menina, portuguesa, de 11 anos, ainda foi vista a andar, ao longo da auto-estrada, junto a um negro antes de se despedir deste Mundo. Traída pela fé nos adultos. Violada, espancada e abandonada como se lixo fosse.
Durante 24 horas, familiares e amigos juntaram-se à polícia numa caça ao homem em Joanesburgo e arredores, que acabaria por resultar, primeiro na descoberta do corpo e, dias depois, na identificação do presumível agressor, actualmente em julgamento.
Testes forenses indicam que Sipho Dube, de 25 anos, terá morto e molestado sexualmente, outros sete meninos e meninas, antes de a inocência de Tina lhe cruzar o caminho, no tempo e local errados.
Dube protesta-se inocente. Disto e do restantes rol de acusações, onde figuram globalmente sete assassínios, quatro violações de meninas, seis molestações sexuais de rapazes, três roubos violentos, agressões agravadas e fuga da custódia policial.
Quando o vi, pela primeira vez, num banco do Tribunal Regional de Joanesburgo, olhava desafiador os polícias à sua volta e os jornalistas que se sentavam uma fila mais atrás, respondendo em zulu – através do intérprete oficial – às perguntas dos advogados e da juíza.
Uma semana depois, a polícia admitia aos jornalistas que o deixara fugir de forma incrível:
– Durante uma chamada matinal de presos de uma cadeia de Joanesburgo, para serem presentes em tribunal, Dube fez-se passar por um dos convocados, após combinar a troca de identidades.
Quando a carrinha celular chegou ao tribunal, os arrolados foram entregues ao oficial de serviço, a quem Dube reclamaria, minutos depois, a sua verdadeira identidade e que «tinha havido um erro».
Sozinho, nas funções, o agente mandou-o esperar, junto à porta, enquanto descia aos calabouços com os restantes detidos.
Quando o guarda regressou ao topo das escadas, Dube saíra homem livre por seu próprio pé, pela porta da frente do tribunal, como mostrariam, mais tarde, os registos das câmaras de segurança.
Foi o escândalo na África do Sul, mesmo e apesar de a polícia e as autoridades judiciais serem grelhadas diariamente pela oposição, os «media» e a opinião pública pelo cancro do crime que ofusca uma das transições políticas (por enquanto) mais bem conseguidas da História contemporânea, após o fim do apartheid.
Num Mundo onde as crianças deveriam ser a primeira prioridade de defesa e carinho de cada adulto e dos Estados, esta é uma tragédia que nos toca directamente a todos e como tal nos deveria roubar o sono. A Tina não é um problemas «dos outros». Nem as Tinas a quem «só» se rouba o direito à felicidade, ao sonho, quanto mais, brutalmente, a vida.
Pretória destacou o «creme» do combate ao crime numa caça nacional ao homem, mas Dube «fundiu-se» meses a fio nas distâncias da outrora Zululândia.
Até ao dia em que, o líder da investigação recebeu uma chamada estranha; uma patrulha da polícia acabara de prender um suspeito de roubo de uma carrinha junto à localidade negra de Alexandra, arredores de Joanesburgo.
O indivíduo tinha documentos com outro nome, mas as impressões digitais e a fisionomia correspondiam às do mandado de captura do homem mais procurado do país.
Mais uma vez, Dube protestou inocência, acusando a polícia, tudo e todos, de racismo e de só o prenderem por ser negro.
Na pele de Dube, vestido de calças de ganga e camiseta amarela, começámos todos, sem darmos por isso, a ser julgados, esta semana, no tribunal Supremo de Joanesburgo.
Pelo nosso alhear, fatalista, ao roubo da inocência.