Opinião
O pesadelo acabou
O alvoroço com que o mundo recebeu a eleição de Barack Obama tem mais a ver com a ruína moral, social, cultural e económica do mundo do que, exclusivamente, com a vitória em si mesma. O novo presidente é um homem simpático, elegante, atraente, bom dialecta e, ao que tenho lido, sério, informado e lido. O contraste com George W. Bush é gritante.
O que vai embora é um pequeno homem atomizado, desprovido de qualquer centelha de estadista, autor de um capítulo sinistro na história do nosso tempo, mas tem precedentes.
O mundo legado por Bush II (já há ameaças do aparecimento do terceiro, um tal Jeb, cujas meninges não dispõem de maior elasticidade do que as do mano) é uma ruína, um lastro de terror e de sangue, de tortura e de desumanidade. Em vez de, sossegadamente, ir para o rancho no Texas, o senhorito deveria responder num tribunal para criminosos de guerra. Ele simboliza o espírito de fronteira, que determinou a crónica da grande nação: pistola à ilharga, desdém pelas regras mais elementares de fraternidade, individualismo.
Há grandes textos europeus sobre os Estados Unidos, os mais clássicos dos quais merecem uma revisita: "Clefs pour l’Amérique", de Claude Roy, um magno tratado sobre a ideologia do poder, no qual se alicerça a estrutura política do país; "L’Amérique Aujour-le-jour", de Simone de Beauvoir, relato de uma experiência vivida entre o maniqueísmo e a ilusão; e "Autópsia dos Estados Unidos", de L.L. Mathias, uma análise específica da desumanização. Claro que há muitos mais. Os estudos sobre os EUA encheriam a biblioteca de Alexandria. De qualquer das formas, todos nós devemos alguma coisa a eles. Não me refiro a essa velha rábula de que foram os salvadores da Europa, na Segunda Guerra Mundial. Indico, sobretudo, a fascinante grandeza e a imponente diversidade da sua cultura – em todos os domínios.
Obama é uma das faces do espelho. E, acaso, a face mais importante, significativa e formidável da nação. Com isso me regozijo e emociono. Com a comoção do mundo me identifico e solidarizo. E sigo, com atenção e, até, desvelo, este homem mulato, cuja representação está muito para além de ele próprio. Os Estados Unidos quiseram ressarcir-se da vergonha a que corresponderam os oito malditos anos de Bush, ao mesmo tempo que desejaram resituar-se do mal e do descalabro.
Como se sabe, os norte-americanos nunca suscitaram gerais simpatias. Tem a ver com uma mistura de ressentimento, de inveja e de júbilo. A imensidão do seu poderio assusta. Na década de 50 designavam-nos, em quase todos os países europeus, de "invasores brancos." Eles tinham sacudido o eixo do poder, eram novos, fortes, vigorosos, e a Europa demonstrava uma anemia sem cura. O nosso verdete encontrou escape na guerra da Coreia (de que quase ninguém fala) e nessa infâmia do Vietname. Mas havia e houve outras.
A CIA nunca deixou de estar presente em golpes de Estado na América Latina, em promover assassínios políticos, em apoiar sangrentos ditadores. A triste farsa do Iraque, com as terríveis imagens do enforcamento de Saddam (despudoradamente transmitidas pelas televisões, numa sórdida cumplicidade com as autoridades norte-americanas), não deve ocultar a sustentação, durante décadas, de tiranos muito mais repugnantes. Democratas e republicanos são por igual responsáveis pelos crimes mais hediondos, um pouco praticados aqui e além, em nome dos "interesses norte-americanos." Aliás, a política externa norte-americana não sofre alterações substanciais, estejam no poder republicanos ou democratas.
Russel Banks, um dos maiores escritores norte-americanos, tem feito reservas às possibilidades de acção futuras do novo presidente. No entanto, não deixa de prever uma aproximação mais laica, mais respeitosa da separação entre Estado e Igreja – "embora Obama não deixe de manifestar uma ternura culpada pela religião e pela opinião dos eleitores cuja visão política é estabelecida pela Bíblia. Não esqueçamos que ele escolheu o predicador evangélico Rick Warren, feroz adversário dos homossexuais, para proferir a oração após a cerimónia da investidura. Depôs, a "guerra contra o terror" continuará a ser qualificada de guerra, e assim prosseguirá enquanto for economicamente útil e politicamente oportuna. A "mudança na qual podemos crer" não se realizará".
Este testemunho de Banks poderá ser interpretado como excessivo, pelo seu implacável pessimismo. Mas ele é "um dos espíritos mais lúcidos da América", dizia Norman Mailer, que sempre foi muito pouco dado a elogios.
Claro que Barack Obama irá alterar alguma coisa. Para que tudo fique na mesma, como dizia o príncipe de Salina, n’"O Leopardo", de Lampedusa? Ele próprio, com admirável sensatez, tem avisado que não se alimentem grandes esperanças. O mundo está demasiado torto e foi gravemente aleijado durante os últimos oito anos. Endireitar as coisas, sim, mas apenas até certo ponto. Basta observar os nomes e descortinar o comportamento ideológico e político dos representantes de quase todos os Estados para se aferir das dificuldades e dos sérios obstáculos que Barack Obama vai ter de enfrentar. E não os pode contornar: tem mesmo de os enfrentar, cara a cara.
Pessoalmente faço força para que o jovem presidente saia vitorioso das rudes pelejas. Já venceu a batalha do preconceito racial. O que não é nada despiciendo. E, pelo menos, o pesadelo acabou. Agora, estar. Como no belo poema de Pedro Tamen.
O mundo legado por Bush II (já há ameaças do aparecimento do terceiro, um tal Jeb, cujas meninges não dispõem de maior elasticidade do que as do mano) é uma ruína, um lastro de terror e de sangue, de tortura e de desumanidade. Em vez de, sossegadamente, ir para o rancho no Texas, o senhorito deveria responder num tribunal para criminosos de guerra. Ele simboliza o espírito de fronteira, que determinou a crónica da grande nação: pistola à ilharga, desdém pelas regras mais elementares de fraternidade, individualismo.
Obama é uma das faces do espelho. E, acaso, a face mais importante, significativa e formidável da nação. Com isso me regozijo e emociono. Com a comoção do mundo me identifico e solidarizo. E sigo, com atenção e, até, desvelo, este homem mulato, cuja representação está muito para além de ele próprio. Os Estados Unidos quiseram ressarcir-se da vergonha a que corresponderam os oito malditos anos de Bush, ao mesmo tempo que desejaram resituar-se do mal e do descalabro.
Como se sabe, os norte-americanos nunca suscitaram gerais simpatias. Tem a ver com uma mistura de ressentimento, de inveja e de júbilo. A imensidão do seu poderio assusta. Na década de 50 designavam-nos, em quase todos os países europeus, de "invasores brancos." Eles tinham sacudido o eixo do poder, eram novos, fortes, vigorosos, e a Europa demonstrava uma anemia sem cura. O nosso verdete encontrou escape na guerra da Coreia (de que quase ninguém fala) e nessa infâmia do Vietname. Mas havia e houve outras.
A CIA nunca deixou de estar presente em golpes de Estado na América Latina, em promover assassínios políticos, em apoiar sangrentos ditadores. A triste farsa do Iraque, com as terríveis imagens do enforcamento de Saddam (despudoradamente transmitidas pelas televisões, numa sórdida cumplicidade com as autoridades norte-americanas), não deve ocultar a sustentação, durante décadas, de tiranos muito mais repugnantes. Democratas e republicanos são por igual responsáveis pelos crimes mais hediondos, um pouco praticados aqui e além, em nome dos "interesses norte-americanos." Aliás, a política externa norte-americana não sofre alterações substanciais, estejam no poder republicanos ou democratas.
Russel Banks, um dos maiores escritores norte-americanos, tem feito reservas às possibilidades de acção futuras do novo presidente. No entanto, não deixa de prever uma aproximação mais laica, mais respeitosa da separação entre Estado e Igreja – "embora Obama não deixe de manifestar uma ternura culpada pela religião e pela opinião dos eleitores cuja visão política é estabelecida pela Bíblia. Não esqueçamos que ele escolheu o predicador evangélico Rick Warren, feroz adversário dos homossexuais, para proferir a oração após a cerimónia da investidura. Depôs, a "guerra contra o terror" continuará a ser qualificada de guerra, e assim prosseguirá enquanto for economicamente útil e politicamente oportuna. A "mudança na qual podemos crer" não se realizará".
Este testemunho de Banks poderá ser interpretado como excessivo, pelo seu implacável pessimismo. Mas ele é "um dos espíritos mais lúcidos da América", dizia Norman Mailer, que sempre foi muito pouco dado a elogios.
Claro que Barack Obama irá alterar alguma coisa. Para que tudo fique na mesma, como dizia o príncipe de Salina, n’"O Leopardo", de Lampedusa? Ele próprio, com admirável sensatez, tem avisado que não se alimentem grandes esperanças. O mundo está demasiado torto e foi gravemente aleijado durante os últimos oito anos. Endireitar as coisas, sim, mas apenas até certo ponto. Basta observar os nomes e descortinar o comportamento ideológico e político dos representantes de quase todos os Estados para se aferir das dificuldades e dos sérios obstáculos que Barack Obama vai ter de enfrentar. E não os pode contornar: tem mesmo de os enfrentar, cara a cara.
Pessoalmente faço força para que o jovem presidente saia vitorioso das rudes pelejas. Já venceu a batalha do preconceito racial. O que não é nada despiciendo. E, pelo menos, o pesadelo acabou. Agora, estar. Como no belo poema de Pedro Tamen.
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