Opinião
O Orçamento fetiche
Apesar de muitos criticarem o conteúdo deste Orçamento do Estado (OE) de 2011, existe uma esmagadora maioria de economistas a defender a necessidade da aprovação deste Orçamento.
O senhor ministro das Finanças deu o tom dizendo que, sem aprovação deste OE, o País ficará, no imediato, incapacitado de obter financiamento externo. Este argumento, embora não demonstrado, tem sido repetido até à exaustão e condicionou a discussão económica e política.
Mesmo aqueles que, ainda há pouco mais de um mês, consideravam preferível um regime de duodécimos a um mau Orçamento alinham firmemente pela abstenção.
Como este OE é, seguramente, um mau Orçamento, algo de terrível, e ainda não conhecido, deve ter ocorrido - ou talvez se trate, muito simplesmente, da criação de um fenómeno bem conhecido nas ciências sociais, desde a antropologia passando pela psicologia e sociologia até à economia. Autores tão antigos como Auguste Comte ou Karl Marx - entre outros - ajudam-nos a entender através do conceito de fetiche o que de outro modo se torna indecifrável.
É como se o OE tivesse vida própria, autonomizando-se da realidade que o determina e envolve. As fantasias sobre a realidade económica projectam-se directamente no OE.
Como em todos o casos de fetichismo, o agente tem sentimentos de culpa e fica ansioso face ao objecto de culto (OE) - o que o impede de ter um relacionamento normal com os outros. Atinge a satisfação através de fantasias excitantes, manipulando o OE.
Temos que entender esta estratégia provisoriamente vencedora: estamos no pântano pós-modernista, onde os factos são também ficções e as ficções são igualmente factos.
Vejamos o factos para além do fetiche.
Um simples Orçamento - ainda que contivesse as medidas certas, que não tem - administrado como os anteriores não induz confiança. A probabilidade do seu incumprimento é muito elevada. O problema da credibilidade tornou-se cada vez mais premente. Conhecemos mal e muito tarde a informação que seria indispensável para elaborar um OE sério e eficaz. Esta situação ficou bem clarificada recentemente com a declaração forte do Governador do Banco de Portugal, em 4 de Outubro, propondo a criação de uma agência independente com a função de "acompanhar a evolução das finanças públicas" e de "avaliar o cumprimento dos objectivos e das regras orçamentais existentes".
As medidas contidas no OE 2011 se, teoricamente, poderiam reduzir o défice, constituem inaceitável punção fiscal e não são acompanhadas de medidas indutoras de crescimento económico.
O que conta efectivamente para os agentes dos mercados são as perspectivas de médio e longo prazo - são estas que têm que ser invertidas.
Este OE mascara a situação portuguesa equiparando-a à dos restantes países da Zona Euro, como se o nosso problema não fosse bem particular. Ainda recentemente, as projecções do FMI mais uma vez confirmam a realidade há muito conhecida e que aguarda tratamento: o reduzido potencial de crescimento implícito na actual política económica. Em 2015, em conformidade com os dados conhecidos sobre o produto potencial, o FMI prevê que Portugal terá a menor taxa de crescimento da zona euro: 1,2%, contra a média da Zona Euro: valor ponderado de 1,7% e a média simples de 2,3% . No mesmo ano, o saldo negativo da balança corrente passará - em percentagem do PIB - dos actuais 10% para 10,8%; enquanto isso a Grécia reduzirá aquele valor dos actuais 10,8% para 4%, cedendo a Portugal o último lugar na lista.
O problema de curto prazo tal como tem sido colocado - não haver crédito para o dia a dia - parece uma historieta para assustar criancinhas. O País tem margem para, pensadamente, até ao fim de 2011, implementar as medidas que se impõem. Não tem necessidade de entrar agora nesta descabelada e sôfrega orgia de austeridade sem alma e sem sementes de futuro.
A curto prazo, o peso dos juros também deve ser relativizado. As taxas marginais são elevadas, mas os valores médios do stock da dívida ainda é suportável (a maturidade média da dívida é de 6,4 anos, sendo 78% do seu total de longo prazo).
Na União Europeia, até ao fim de 2011 vai haver um compasso de espera. No fim daquele ano a Alemanha retomará o pleno controle do BCE e só então a premência do que agora se apregoa se colocará.
Mas, se necessário, pode recorrer-se à Facilidade Europeia de Estabilização Financeira, a qual suprime, durante a sua vigência a necessidade de recurso aos mercados.
Não é uma oposição temerosa e acobardada perante um governo repetidamente irresponsável que acalmará os mercados. Lembremos que, apesar do acordo de antes do Verão, a taxa de juro a 10 anos deu um salto de quase 2% desde o mês de Maio. Um acordo agora não terá destino diferente.
Podem as razões de política pura de assalto ao poder apelar à abstenção, levando uma via suave para a simples alternância, por descarte de verdadeira alternativa. Porém, trabalharão contra os interesses do País, que exigem a construção de uma política radicalmente diferente. Esta, embora não seja totalmente impossível com a abstenção, torna-a muito mais difícil e improvável. Deixar passar o aumento de impostos e a punção desmesurada sobre o rendimento dos portugueses que se perfila - não lhe pondo o travão disponível - prejudicará muito o crescimento económico e o sector privado, constitui um retrocesso e prejudicará no futuro a formulação e assumpção duma política económica que concilie o equilíbrio das finanças públicas e o crescimento.
Com este OE aprovado, daqui a um ano podemos estar não na mesma situação, pior ou mesmo muito pior, se entretanto ocorrerem outros episódios com consequências negativas sobre as finanças públicas1 que obriguem a novo agravamento da austeridade. Quem agora se abstiver será também responsabilizado.
Há demasiada gente enfeitiçada com este Orçamento.
O feitiço do OE 2011 tem que ser quebrado: chumbando-o no parlamento.
1 Além de outras ocorrências, permitidas pela opacidade das contas públicas, outras surpresas podem aparecer que obriguem a gastos públicos adicionais. Se é certo - e tem sido bem referido que a nossa banca não acolheu significativos activos tóxicos da primeira leva - alguma informação reunida pelo Bank of International Settlements aponta para o aumento recente de alguns riscos evitáveis. Os bancos portugueses aumentaram recentemente a sua exposição à Grécia e, em Março de 2010, já eram, entre os bancos europeus os seus quatro maiores credores, com activos de 11,7 biliões de dólares - uma desproporção para a dimensão do pais - representando 6,4% dos créditos dos bancos europeus sobre a Grécia.
Economista e professor no ISEG
majesus@iseg.utl.pt
Coluna à terça-feira
Mesmo aqueles que, ainda há pouco mais de um mês, consideravam preferível um regime de duodécimos a um mau Orçamento alinham firmemente pela abstenção.
É como se o OE tivesse vida própria, autonomizando-se da realidade que o determina e envolve. As fantasias sobre a realidade económica projectam-se directamente no OE.
Como em todos o casos de fetichismo, o agente tem sentimentos de culpa e fica ansioso face ao objecto de culto (OE) - o que o impede de ter um relacionamento normal com os outros. Atinge a satisfação através de fantasias excitantes, manipulando o OE.
Temos que entender esta estratégia provisoriamente vencedora: estamos no pântano pós-modernista, onde os factos são também ficções e as ficções são igualmente factos.
Vejamos o factos para além do fetiche.
Um simples Orçamento - ainda que contivesse as medidas certas, que não tem - administrado como os anteriores não induz confiança. A probabilidade do seu incumprimento é muito elevada. O problema da credibilidade tornou-se cada vez mais premente. Conhecemos mal e muito tarde a informação que seria indispensável para elaborar um OE sério e eficaz. Esta situação ficou bem clarificada recentemente com a declaração forte do Governador do Banco de Portugal, em 4 de Outubro, propondo a criação de uma agência independente com a função de "acompanhar a evolução das finanças públicas" e de "avaliar o cumprimento dos objectivos e das regras orçamentais existentes".
As medidas contidas no OE 2011 se, teoricamente, poderiam reduzir o défice, constituem inaceitável punção fiscal e não são acompanhadas de medidas indutoras de crescimento económico.
O que conta efectivamente para os agentes dos mercados são as perspectivas de médio e longo prazo - são estas que têm que ser invertidas.
Este OE mascara a situação portuguesa equiparando-a à dos restantes países da Zona Euro, como se o nosso problema não fosse bem particular. Ainda recentemente, as projecções do FMI mais uma vez confirmam a realidade há muito conhecida e que aguarda tratamento: o reduzido potencial de crescimento implícito na actual política económica. Em 2015, em conformidade com os dados conhecidos sobre o produto potencial, o FMI prevê que Portugal terá a menor taxa de crescimento da zona euro: 1,2%, contra a média da Zona Euro: valor ponderado de 1,7% e a média simples de 2,3% . No mesmo ano, o saldo negativo da balança corrente passará - em percentagem do PIB - dos actuais 10% para 10,8%; enquanto isso a Grécia reduzirá aquele valor dos actuais 10,8% para 4%, cedendo a Portugal o último lugar na lista.
O problema de curto prazo tal como tem sido colocado - não haver crédito para o dia a dia - parece uma historieta para assustar criancinhas. O País tem margem para, pensadamente, até ao fim de 2011, implementar as medidas que se impõem. Não tem necessidade de entrar agora nesta descabelada e sôfrega orgia de austeridade sem alma e sem sementes de futuro.
A curto prazo, o peso dos juros também deve ser relativizado. As taxas marginais são elevadas, mas os valores médios do stock da dívida ainda é suportável (a maturidade média da dívida é de 6,4 anos, sendo 78% do seu total de longo prazo).
Na União Europeia, até ao fim de 2011 vai haver um compasso de espera. No fim daquele ano a Alemanha retomará o pleno controle do BCE e só então a premência do que agora se apregoa se colocará.
Mas, se necessário, pode recorrer-se à Facilidade Europeia de Estabilização Financeira, a qual suprime, durante a sua vigência a necessidade de recurso aos mercados.
Não é uma oposição temerosa e acobardada perante um governo repetidamente irresponsável que acalmará os mercados. Lembremos que, apesar do acordo de antes do Verão, a taxa de juro a 10 anos deu um salto de quase 2% desde o mês de Maio. Um acordo agora não terá destino diferente.
Podem as razões de política pura de assalto ao poder apelar à abstenção, levando uma via suave para a simples alternância, por descarte de verdadeira alternativa. Porém, trabalharão contra os interesses do País, que exigem a construção de uma política radicalmente diferente. Esta, embora não seja totalmente impossível com a abstenção, torna-a muito mais difícil e improvável. Deixar passar o aumento de impostos e a punção desmesurada sobre o rendimento dos portugueses que se perfila - não lhe pondo o travão disponível - prejudicará muito o crescimento económico e o sector privado, constitui um retrocesso e prejudicará no futuro a formulação e assumpção duma política económica que concilie o equilíbrio das finanças públicas e o crescimento.
Com este OE aprovado, daqui a um ano podemos estar não na mesma situação, pior ou mesmo muito pior, se entretanto ocorrerem outros episódios com consequências negativas sobre as finanças públicas1 que obriguem a novo agravamento da austeridade. Quem agora se abstiver será também responsabilizado.
Há demasiada gente enfeitiçada com este Orçamento.
O feitiço do OE 2011 tem que ser quebrado: chumbando-o no parlamento.
1 Além de outras ocorrências, permitidas pela opacidade das contas públicas, outras surpresas podem aparecer que obriguem a gastos públicos adicionais. Se é certo - e tem sido bem referido que a nossa banca não acolheu significativos activos tóxicos da primeira leva - alguma informação reunida pelo Bank of International Settlements aponta para o aumento recente de alguns riscos evitáveis. Os bancos portugueses aumentaram recentemente a sua exposição à Grécia e, em Março de 2010, já eram, entre os bancos europeus os seus quatro maiores credores, com activos de 11,7 biliões de dólares - uma desproporção para a dimensão do pais - representando 6,4% dos créditos dos bancos europeus sobre a Grécia.
Economista e professor no ISEG
majesus@iseg.utl.pt
Coluna à terça-feira
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