Opinião
O novo trabalho produtivo
Há uma ideia muito glosada entre nós: os empresários são os principais culpados da crise que o país atravessa por não terem orientado os seus investimentos para os sectores produtores de bens transaccionáveis, “recuando” egoisticamente para os sectores pr
Persiste, agora com novas roupagens, a crença numa preferência sectorial segundo a qual há sectores bons e sectores maus – numa linguagem mais técnica, sectores “produtivos” e “sectores improdutivos”.
Por outro lado, nos últimos tempos têm-se multiplicado as manifestações de preferência dos poderes públicos pela promoção de sectores e de mercados específicos.
Na área geográfica, o factor proximidade parece prevalecer, seja a proximidade cultural e linguística, seja a proximidade geográfica. Assim aprioridade tem sido umas vezes o Brasil, outras a Espanha.
No que concerne à preferência sectorial, a presença do factor alta tecnologia é esmagador. Os termos são diversificados mas apontam todos na mesma direcção: novas tecnologias, sociedade do conhecimento, tecnologias da informação e outro aparentados. O próprio conceito de Plano Tecnológico sintetiza a nova ideologia de Estado.
Trata-se de uma certa ingenuidade que não deixa de ter os seus perigos e não tem razões sérias para persistir, por duas razões principais.
Primeiro, a história do pensamento económico é suficientemente instrutiva sobre as armadilhas a que nos conduzem as preferências sectoriais. Segundo, os melhores trabalhos teóricos e empíricos na última década sobre a questão da estrutura sectorial das economias apontam inequivocamente para a não fundamentação da ideia da bondade da promoção das produções intensivas em alta tecnologia como critério de defesa dos países face aos efeitos mais nocivos da globalização.
São numerosos os casos em que os economistas se atreveram a valorar as diversas actividades económicas. Ainda hoje é incontornável a referência à dicotomia bens transaccionáveis/bens não transaccionáveis para fundamentar a ideia, muito difundida, da superioridade daqueles que se dedicam à produção dos primeiros. Menos frequente, mas bem presente, está também a ideia da inferioridade – face aos sectores produtores de bens materiais – dos sectores produtores de serviços, com especial destaque para o sector financeiro, amiúde apelado de parasitário. O caso extremo julgo ser o de um dos mais conceituados economistas portugueses, que, sendo na altura ministro, apelidou, nos loucos anos do PREC, o sector do turismo de sector prostituto.
Mas o caso mais antigo, onde vão beber todas os outros, é o da oposição trabalho produtivo/trabalho improdutivo. Esta dicotomia ainda persiste na literatura de inspiração marxista, mesmo depois de Karl Polanyi (em A Grande Transformação) e de Annah Arendt (em A Condição Humana) terem elaborado argumentos decisivos contra a relevância da ideia.
O papel anteriormente desempenhado pela figura de trabalho improdutivo é actualmente despenhado pelo trabalho indiferenciado ou pouco qualificado, tão desprezível como o primeiro.
A afirmação da indignidade do trabalho pouco qualificado – quando não do próprio trabalho manual em geral – tem vindo a ser reforçada perante a percepção, muito difundida, segundo a qual a nova divisão internacional do trabalho, que a globalização transporta, levaria à deslocação para o exterior sobretudo das produções menos intensivas em tecnologia.
Aquela percepção está longe de corresponder aos desenvolvimentos efectivamente verificados. Os estudos mais recentes mostram que não é verdade que os trabalhos mais afectados pelas deslocações para o exterior sejam os menos qualificados. De facto, tem sido mais fácil deslocar o analista financeiro do que a sua secretária.
Significativamente, num estudo recente1 para a economia americana foi elaborado um índice de deslocabilidade e concluiu-se que a profissão de programador informático e o operador dos correios são, respectivamente é a mais e a menos afectada. De acordo com o referido estudo, embora 22% a 29% dos empregos sejam potencialmente deslocados nos próximos 10 a 20 anos, na verdade, não há correlação entre qualificação e deslocabilidade.
O perigo provém dos bens e serviços transaccionáveis, independentemente do grau de qualificação necessária para a sua produção.
Do ponto de vista conceptual e da elaboração teórica, visando compreender os fenómenos económicos, há a necessidade de reforçar a ideia de que todos os sectores devem ser colocados no mesmo plano, na medida em que produzam bens ou serviços destinados a satisfazer necessidades humanas moralmente aceitáveis.
No plano da política económica, haverá que ter em conta que o maior desafio que enfrentamos é o de salvaguardar as oportunidades de integração pelo trabalho no contexto da globalização crescente em que as tentações proteccionistas são permanentes. Perante os desafios reais de redução dos empregos a tentação maior – descontando o proteccionismo que seria igualmente um engano certo – é a deriva tecnologista, indiferenciada ou qualificada por interesses particulares, legítimos mas desenquadrados do interesse geral. Este deve ser orientado pela maximização da criação de oportunidades de trabalho.
Assim, mais uma vez foi criado um contexto em que não pode haver fuga a um conceito de preferência sectorial, agora suportado na ideia de deslocabilidade. Esta significa a potencialidade para a deslocação da produção para o exterior. Se o economista puder prever – na base das respectivas características de produção e consumo – os sectores que não se vão deslocar para o exterior, em situação de liberdade de comércio e de circulação de capitais, terá encontrado nessa tarefa um trabalho assaz “produtivo”.
1 Alan S. Blinder, “How Many U.S. Jobs Might be Offshorable?”, CEPS Working paper, nº 142, Março de 2007.