Opinião
O exemplo argentino
O caso da Argentina, muito longe de estar resolvido, é uma cadeia de situações, de decisões, de consequências das decisões, que deve dar para pensar que não há soluções simples e intuitivas para problemas complexos como o de Portugal.
O caso da Argentina, muito longe de estar resolvido, deve dar para pensar que não há soluções simples e intuitivas para problemas complexos como o de Portugal
Adolfo Rodriguez Saá, descendente de imigrantes palestinos, foi eleito presidente da Argentina em 22 de Dezembro de 2001, na sequência da renúncia de Fernando De la Rúa. No seu discurso de investidura decretou o "default" da dívida pública argentina. Foi aplaudido de pé, entusiasticamente, pelos deputados. Festejou-se a independência relativamente aos credores internacionais. Renunciou uma semana depois...
A criação de uma nova moeda que ele tinha anunciado, o "argentino", lastreada no património fundiário do Estado e destinada a substituir as "quase-moedas" informais improvisadas com que se supria a falta de dinheiro na economia, não teve seguimento. Eduardo Duhalde sucedeu-lhe e exerceu até Maio de 2003, quando foi substituído por Néstor Kirchner.
Para compreender a Argentina de hoje, tem de se recuar a 1990, quando Carlos Menem, debatendo-se com uma hiperinflação que atingiu 5 000% ao ano (!), nomeou Domingo Cavallo como ministro da Economia. Eliminou a inflação, fixando a taxa de câmbio do "austral" ao dólar. Pouco depois restabeleceu o peso como moeda nacional. Livremente convertível em dólar na relação 1:1. Não é muito diferente de substituir a moeda por outra mais forte que não se controla.
A estabilidade do peso melhorou a qualidade de vida. Importações facilitadas, a possibilidade de ter crédito em dólares a taxas normais, etc.. Conhecemos isso. E também que a indústria decaiu pelo desvio do consumo para o exterior. Começaram os problemas de desemprego. O governo Menem foi um governo despesista e acentuou-se a corrupção que teria chegado ao topo do Banco Central. A dívida pública cresceu sem controlo. A evasão fiscal e lavagem de dinheiro, mesmo dentro do próprio sistema financeiro, motivaram desvio avultado de fundos para offshores.
A revalorização do dólar e o desencadear de crises em 1999 em outros países da América Latina, clientes importantes da Argentina, agravaram a crise. A estabilidade económica transformou-se em estagnação, depois em depressão. Foi por esta altura, com a falta de dinheiro, que apareceram as "quase-moedas", o "patacon" e o "lecop", as mais fortes.
O FMI fez empréstimos para suprir dificuldades de balança de pagamentos até que cessou a sua ajuda por incumprimento das metas orçamentais acordadas.
Em final de 2001, já no terceiro ano de uma violenta crise, o levantamento da classe média - na sequência de cortes nas pensões e do congelamento dos depósitos (o "corralito") - resultou em violentos tumultos que motivaram a renúncia dos elementos-chave do governo e depois do próprio presidente. Substituído pelo "one week president" como ficou conhecido Rodriguez Saá.
A crise argentina do final dos anos 90 até 2002 resultou indubitavelmente da convergência dos três factores: a convertibilidade a taxa fixa do peso relativamente ao dólar; a despesa pública descontrolada e a insuficiência das receitas fiscais.
Em 2002, já com Duhalde, o "corralito" passou a "corralón" com os depósitos bancários liberados apenas sob a forma de títulos denominados em pesos. O peso foi desvalorizado para a relação 1,40:1. Posteriormente flutuou chegando a atingir a relação de 4 pesos para 1 dólar, gerando ganhos para quem, a tempo, tinha transferido dólares para o exterior... Num país em que 57% da população, nessa altura, vivia abaixo do limiar da pobreza, sofrendo no auge da crise as maiores privações, criavam-se também grandes fortunas.
A cessação de pagamento da dívida libertando recursos para apoio às actividades económicas, a subida internacional dos preços da soja e da carne e a competitividade ganha com a desvalorização do peso, além da baixa de salários correspondente a taxas de desemprego elevadas, deram um considerável impulso à recuperação da economia argentina. Que foi o que Néstor Kirchner encontrou logo no início do seu mandato, em Maio de 2003.
Coube a este presidente, o "Pinguim" como lhe chamavam os amigos, recordando a sua origem na Patagónia, iniciar negociações com os credores, tentando combater a imagem de pária que a Argentina tinha nos mercados financeiros. Até hoje, só a Venezuela comprou, e limitadamente, títulos de dívida argentinos, mas a uma taxa que, creio, rondou os 15%. A evolução favorável da economia deu para liquidar em 2006 a dívida contraída com o FMI, estatutariamente um crédito privilegiado. Mas ainda não foi paga a dívida ao Clube de Paris. Em entrevista a um jornal brasileiro disse Kirchner em 2008, já não era presidente, que não desejava a ninguém nem a nenhum povo passarem por aquilo que ele e o povo argentino tinham passado. Eu li.
Em 2005, a Argentina, depois de muitas tentativas falhadas para negociar com os credores, fez uma oferta unilateral em termos julgados muito desfavoráveis para os credores. Mesmo assim, cerca de 75%, correspondendo a 62 biliões de dólares, aceitaram receber títulos no valor facial de 35 biliões, perdendo os juros vencidos. Não é difícil de entender. Ainda antes do "default", os títulos de dívida argentina já estavam desvalorizados. A última emissão, em 1999, tinha sido feita a um juro de 16% e no mercado secundário, de 2001 até 2005, o preço dos títulos foi descendo até aos 11% do valor nominal. É a altura em que os "fundos abutre" intervêm e compram. Para quem comprou assim, a oferta da Argentina de pagar cerca de 56% do valor nominal com uma boa taxa de juro representa um lucro avultado. Não vejo como condená-los.
Os resistentes ("holdouts") que não aceitaram representam cerca de 19 biliões de dólares. Alguns têm litigado contra a Argentina e um navio da marinha argentina chegou a ser apreendido a pedido de credores. Qualquer bem da República Argentina corre o mesmo risco, o que deixa o país sem poder acorrer aos mercados internacionais.
O governo decidiu fazer nova oferta em 2010 dirigida a estes resistentes e conseguiu a aceitação para a troca de títulos no valor de cerca de 13 biliões. No total, está reestruturada mais de 90% da dívida total com juros relativamente elevados (até 5,25% para individuais e 8,28% para institucionais) e vencimento postergado para 2035. Se tivesse este resultado sido obtido por negociação, mesmo sem CAC, não haveria dificuldade de maior para a Argentina regressar aos mercados financeiros. Haveria compreensão.
Ainda recentemente um tribunal em Nova Iorque decidiu favoravelmente a alguns "hedge funds" que resistiram e querem ver reconhecidos pela Argentina e pagos os seus créditos. O tribunal, interpretando a cláusula "pari passu", entendeu que não pode a Argentina pagar aos credores que aceitaram a reestruturação sem pagar também aos outros, deixando o NYB Melon, através do qual os pagamentos são feitos e que não pode ignorar o tribunal, coagido a não pagar aos que aceitaram. Será um novo "default", se a Argentina insistir em não pagar aos "hedge funds".
Entretanto, a presidente da Argentina propõe-se abrir uma nova oferta de troca, agora dos títulos reestruturados, por outros emitidos na Argentina e sujeitos às leis do país. "The last tango", como escreveu um analista financeiro, não vai facilitar o regresso da Argentina ao mercado.
Em pesadelos, o drama argentino parece-nos familiar nas suas causas e em algumas propostas. O grito "Que se lixem os credores" também levantaria o País em aplausos. Junte-se a saída do euro e seria o delírio, como que o fim de uma guerra com o povo nas ruas celebrando. O pior seria o despertar, como na Argentina foi e ainda está sendo. Voltou o "corralito" (em Outubro de 2012) e os "caçarolazos" (o último em Agosto último) contra a situação do país, como antes da queda de De la Rúa. As províncias em dificuldades pagaram apenas parcialmente aos funcionários e vêm aí novamente os "patacons". A relação peso/dólar hoje é 10:1 no mercado livre.
Como síntese, o caso da Argentina, muito longe de estar resolvido, é uma cadeia de situações, de decisões, de consequências das decisões, que deve dar para pensar que não há soluções simples e intuitivas para problemas complexos como o de Portugal…
Economista