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12 de Julho de 2005 às 13:59

O embondeiro Serafina

Mana Timbila sonecava debaixo do embondeiro, sonhando que aquela árvore gigantesca nascera, como ela, virada do avesso. A cabeça enfiada nos cheiros da terra e os membros crescendo para o Sol, numa vertigem telúrica irresistível.

  • ...

Timbila assim era, minerando no escuro os brilhos que a vida lhe escondia.

Buscando nos sonhos, a lógica cada vez mais ausente no dia-a-dia dos que, fisicamente acordados,  da razão pareciam adormecidos.

Na escola, ninguém brincava com ela porque na lógica africana não tinha alma. Nascida que era, albina,  Deus despojara-a de existência espiritual.

Era um envelope sem carta, que nunca chegaria a destino algum.

Timbila o sabia, porque assim lhe o tinham dito, e repetido,  até as lágrimas secarem e as palavras já não doerem.

Nem a solidão do recreio, onde fechava os olhos e sonhava ser preta como um tição. Da cor dos pneus do autocarro da escola. Mesmo. Assim tanto.

A menina não era suficientemente  nada para ser algo. Nem branca, nem preta, nem mulata.  Diziam, na crença dos seus antigos, que um albino quando morre, não tem outro mundo para onde ir. Apenas, pura e simplesmente, desaparece.

Mesmo assim, ou, talvez,  por isso mesmo, Timbila ia à igreja,  rezar a um Deus sem cor. Fechava os olhos e imaginava-se arco-íris, onde cada um, de cada raça, se revia numa tonalidade ou no somatória delas.

Timbila sonecava,  sonhando estar debaixo do embondeiro,  até que alguém a abanou: «Anda daí mana... anda daí! Em vez de ressonares anda mas é jogar à macaca!». A rapariga  abriu primeiro um olho e, depois, um sorriso inteiro para a Teresa «Mulunga»? a última branca do bairro,  prostituta a tempo inteiro e a sua única amiga, nas horas vagas do serviço.

Teresa tinha quase o dobro da idade de Timbila,  mas lá dentro do coração, onde as coisas contam,  o medidor de solidão já há muito parara de contar o tempo nas duas. Desperdício que eram, da fábrica de existências.

A menina negra, albina,  e a rapariga branca, prostituta,  marcaram na estrada, com estilhaço de tijolo,  a esquadria da macaca. E foram pé-coxinhando o jogo, para a frente e para trás, até esgotarem a vertigem de saltar para fora deste Mundo. Era assim todos os dias. Até o cair do Sol derreter os corpos em sombras e cada uma ir à sua solidão.

Timbila entrou no café da Serafina com a moeda de cinquenta cêntimos apertada na mão suada e foi lendo os preços emprateleirados,  antes de se aventurar pedir fosse o que fosse. O seu tesouro redondo de metal, encontrado na rua,  não chegava aos calcanhares de nada à vista,  enquanto a mãozita bicava  suor, empurrado pelo somar da fome.

Por cima do balcão, uma televisão  ia servindo,  com uma sensação bacoca de «déjà vue», o  menu noticioso do dia,  que a Serafina ia antecipando,  qual karaoke recitado para a clientela: «Querem apostar?» - perguntava ela lampeira mal começava a ouvir-se o «genérico» do jornal televisivo.

«Entradas de Casa Pia e depois o granel de histórias de política,  onde muito se fala e nada diz» - atirou ela, provocadora,  limpando o tampo do balcão com um pano nauseabundo.

«E depois, vamos ter três ou quatro explosões, atentados a granel, um tufão a fazer saltar a tampas,  secas aqui, inundações acolá e, finalmente, o mundo dos que chutam com o pé que têm mais à mão» - acrescentou a matrona, com uma gargalhada contagiante. «Tão a ver? Isto de fazer jornais, em televisão, não tem nada que saber. É sempre a mesma receita. Abre-se com o maior grito do dia,  adicionam-se os sempre iguais nadas da politiquice, aplicam-se umas lambidelas do mundo, reduzido a labaredas e trólitadas, e rega-se tudo com uns marmanjos que passam uma semana a falar do jogo que já fizeram ou hão-de fazer».

Timbila estacionara  à sua frente, de boca cada vez mais escancarada e os olhos a dançar entre a Serafina e a televisão  fixada uns palmos mais acima.

«Xi! Aquela branca acertava mesmo! Sabia as notícias antes mesmo de elas serem servidas no Café?» - pensou a menina,  com os cinquenta cêntimos a escaldar-lhe na palma da mão.

A matrona agarrou-a com os olhos e atirou-lhe; «olha lá tu ó catraia! Isto não são horas de tares na  cama?».

Timbila gelou, com medo que a mulher lhe despisse o futuro, como os sangomas africanos liam no atirar dos ossos.

Serafina somava-se à sua frente. Imponente. Enorme. De cabelos eriçados. Pés descalços. Sapudos. Colados ao chão e a umas pernas troncudas.

Sem dizer uma palavra,  a menina entregou-lhe a moeda e saiu porta fora com a alma levezinha . Serafina era o embondeiro dos seus sonhos.

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