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O tubarão morto

Os políticos mentem? Desde sempre, sim. Como conseguem safar-se com as mentiras? Às vezes não conseguem: veja-se Nixon, que caiu não exactamente por ter estado envolvido num grave acto antidemocrático, mas porque mentiu sobre o seu envolvimento na tramoia.

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Na maior parte dos casos, contudo, os políticos conseguem sobreviver à mentira, sejam ainda candidatos ao poder ou já inquilinos do poder. Como conseguem?

Conseguem porque a política faz-se de partidos que correspondem a diferentes facções ou tribos - e cada tribo responde à mentira em política de uma forma padronizada. Quando a mentira é da facção adversária ela é valorizada e, em vários casos, dramatizada - finge-se escândalo, tomam-se sais de frutos, pedem-se consequências políticas e até criminais. Quando a mentira vem da nossa facção ela é desvalorizada e devidamente enquadrada numa qualquer conspiração para atacar "um dos nossos" - ele não mentiu e, se mentiu, isso não é tão importante como outras coisas de que vocês não estão a falar.

A tribalização da verdade não é feita apenas pelos políticos, longe disso. É feita por todos os que têm posicionamento político ou interesses em jogo. Num fórum de opinião pública em que participei há dias sobre o caso Domingues/Governo ouvi um senhor reformado dizer que lhe tinham devolvido a sobretaxa e que, para ele, isso chegava para mandar às malvas as contradições do Governo. Já li professores universitários, jornalistas, gente inteligente e educada, a argumentar de forma não muito diferente - o caso da Caixa é para queimar o ministro do défice de 2,1%, conquista de que ninguém fala. Na outra tribo, que no passado desvalorizou contradições várias dos seus e usou o parlamento para os defender, ouve-se hoje a necessidade de moralizar a vida política e de deixar funcionar o nobre escrutínio parlamentar.

A tribalização ajuda à sobrevivência política num caso de mentira ou de ocultação flagrante - mas não é o único factor. A complexidade é outro apoio. O caso da Caixa junta-se a outros de gravidade variada - como o dos swaps, só para dar um exemplo recentes - e de complexidade elevada. A maioria das pessoas, para quem o facto de os políticos mentirem não é um choque, não tem vagar, nem apetência, para seguir ao detalhe estes enredos - e é nos detalhes, como sabemos, que está o Diabo. Os políticos sabem disto e por isso recorrem a artifícios que acrescentam complexidade, como o "não há nenhum documento timbrado e assinado que prove isso".

Por fim, há o chamado ciclo noticioso. Em "Annie Hall" quando Alvy (Woody Allen) tenta explicar a Annie (Diane Keaton) por que razão têm de acabar a relação, recorre à célebre imagem do tubarão: "Uma relação, eu acho, é como um tubarão. Tem de andar constantemente para a frente ou morre. Penso que o que temos nas nossas mãos é um tubarão morto." Nas televisões e nos jornais é igual: há que andar para a frente e um caso que fique ali a marinar sem consequência é um tubarão morto, a pesar nas audiências.

A mentira não tem toda a mesma gravidade - é diferente mentir para encobrir corrupção ou mentir para encobrir uma (má) excepção a um gestor. Mas, quando a mentira se torna evidente e é suportada pelas principais figuras do regime, tem um efeito venenoso: mina a confiança, descredibiliza o sistema político, dá um mau exemplo. Nada que tire o sono a essas figuras ou aos membros das suas tribos - hoje a tribo do Zé, amanhã a do Manel, sempre de dedo em riste, a moralizar ou a negar.

Este artigo está em conformidade com o novo acordo ortográfico

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