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Na morte das regras e dos padrões

Num dos seus mais inquietantes romances, "Os Irmãos Karamazov", Dostoievski faz dizer ao mais velho deles: "Se Deus não existe, tudo é permitido."

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Num dos seus mais inquietantes romances, "Os Irmãos Karamazov", Dostoievski faz dizer ao mais velho deles: "Se Deus não existe, tudo é permitido." O grande russo enunciava, numa metáfora perturbadora, ao que conduzia a quebra de valores numa sociedade esvaziada de sentido moral. Ao desbragamento, à promoção do que o homem tem de pior e de mais sórdido, à própria inversão do sentido da vida. Deus como padrão, Deus como relação mais humana do que divina, Deus materializado (se assim me posso exprimir) num modo de funcionamento das nossas acções. Se não houver regras e se, as havendo, essas regras são permanentemente dissolvidas, então, o caos instalar-se-á.

No dia-a-dia português estamos a verificar essa ausência de padrões e de ética que nos está a empurrar para terrenos pantanosos. O caso ocorrido nos centros comerciais do Pingo Doce é mais do que ultrajante: é abjecto. O grupo Jerónimo Martins-Alexandre Soares dos Santos infringiu todas as normas de convivência social, fez uma provocação arrogante e inútil ao 1º de Maio e aos trabalhadores que o assinalam, e entrou em conflito com as fórmulas do próprio "mercado", que diz respeitar.

Um pobre senhorito que por aí anda, trepado a "sociólogo" e um oportunista sem escrúpulos, proferiu a afirmação: "é um golpe genial", que não é apenas infausta como cavalar. Não se trata da manifestação de um raciocínio, sim de um espinoteante tolejo. A "promoção" de 50% oferecida pelo Pingo Doce, levanta questões importantes: ou eles têm lucros fabulosos e, acaso, ilegais, ou, então, diminuíram os preços abaixo do custo de produção, o que constitui outra ilicitude.

Não há justificação plausível e decente para este acto. E chegam a atingir as raias do desprezível as declarações de políticos de direita e de extrema-direita, no Parlamento e nas televisões. A conciliação entre lucro e justiça torna-se, cada vez, mais evidentemente impossível pela unilateralidade de uma das componentes. Quando assistimos ao lacrimejar de João Proença, assinante do vergonhoso tratado com o patronato e o Governo, sentimos que o desmantelamento do Estado Social obedece a todas esta ideologia violenta. E não o podemos levar a sério. O caso do Pingo Doce é um patamar dessa teoria de espoliação que está em marcha, e cujo objectivo fundamental é o domínio total dos mercados financeiros. Ainda temos forças para inverter este processo de demolição e de medo?


E na morte de Fernando Lopes
Sabia-o muito doente, muito desencantado e muito desiludido. Mas não lhe ouvi, jamais, um queixume, uma lamúria, uma acusação. O Fernando Lopes era o mais aprazível dos homens, o mais generoso dos amigos e o mais presente de todos os ausentes. Éramos amigos fraternos, desde os alvoroços da nossa juventude até às aquisições do destino de cada um de nós. Tínhamos pouco mais de vinte anos quando nos conhecemos, em casa do Artur Ramos, para onde fôramos levados pela mão amiga do Luiz-Francisco Rebello. Uma noite inesquecível. Eu era um crítico de cinema aguerrido e truculento; ele acabara de regressar de Londres, com um livro para me oferecer numa dedicatória que firmava o poder da amizade.

O livro era o Manifesto dos jovens ingleses em fúria, e continha textos, entre outros, de Harold Pinter e Kennett Tynan. Queríamos tomar conta do mundo, ambição modesta para o tamanho dos nossos sonhos. Trabalhámos juntos em muitos filmes: no mítico "Belarmino", n' "As Palavras e os Fios", n' "Este Século em que Vivemos", e na adaptação do romance "Domingo à Tarde", de Fernando Namora, que acabou por ser cinematizado por António de Macedo. Escrevi, a seu lado, o meu primeiro romance "O Secreto Adeus", de que ele é uma das personagens. Num período de aperto da minha vida, dormi em casa dele, e entre nós dividimos o dinheiro de que íamos dispondo. Havia, entre nós, o compromisso de honra e o respeito por essa ética da amizade que implica o exercício da crítica e da verdade. A uma rádio, que me interpelou sobre a morte do meu amigo, indiquei: "Todos os filmes do Lopes são autobiográficos e reflectem, também, uma amarga ternura pela vida portuguesa." É curioso ter ouvido Rogério Samora, seu actor-fetiche (com Rui Morrison) dizer que, quando filmava com ele, tinha a impressão de que era o seu alter-ego. Claro que era. O Fernando Lopes filmou a sua vida do interior de si mesmo e expôs-se com o pudor e o escrúpulo que o caracterizavam. Se viram, ou voltarem a ver, "O Fio do Horizonte", baseado num texto de Antonio Tabucchi, com magistral interpretação de Claude Brasseur, verificarão a natureza do que digo. E a expressão impressionante de um grande realizador de cinema europeu. Adeus.


b.bastos@netcabo.pt


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