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Justiça entre gerações

Na discussão em curso sobre as chamadas "grandes obras públicas", o lado que defende a sua continuidade a qualquer preço trouxe à baila o argumento da Ponte 25 de Abril, referindo que só muito recentemente esta teria acabado de ser paga.

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Na discussão em curso sobre as chamadas "grandes obras públicas", o lado que defende a sua continuidade a qualquer preço trouxe à baila o argumento da Ponte 25 de Abril, referindo que só muito recentemente esta teria acabado de ser paga.

Pretende com esse exemplo sustentar o argumento de que é normal que umas gerações deixem encargos e benefícios para as seguintes. Assim, a actual geração transmite-os às gerações seguintes, como também os recebeu das gerações passadas.

Não tenho nenhum problema com o argumento em si, mas se eu estivesse desse lado da discussão não quereria trazer aquele exemplo à liça e pediria até que ninguém se lembrasse dele, pois que, devidamente analisado, sustenta precisamente a tese do lado contrário e expõe o cerne da questão.

Estoutro lado da discussão, onde me situo, tem defendido o adiamento das obras ou, pelo menos, o seu muito cuidado escrutínio económico, não porque tenha alguma posição de princípio contra o investimento público em si, ou contra a utilidade de cada uma das obras de per si, como maldosamente se insinua.

Defende essa posição porque entende que o País já se endividou excessivamente, tem um enorme desequilíbrio externo que agrava continuamente o endividamento e que as obras em causa, justificáveis noutro contexto, agravam os desequilíbrios e o endividamento, sem criar a capacidade produtiva - e sobretudo exportadora! - necessária para atenuar, pelo menos, tais problemas. Neste sentido, agravar a factura financeira que já se está a transmitir às gerações futuras, sem lhes dar os meios de criação de riqueza necessários para pagar essa factura, é um atentado à sua liberdade - porque limita seriamente a sua margem de escolhas - e, como tal, é de uma profunda injustiça inter-geracional.

E é aqui que entra, a contra-vento da tese que o sugeriu, o exemplo da Ponte 25 de Abril. É que quem deixou a ponte por pagar, deixou também, ao nível macroeconómico, reservas externas (líquidas) correspondentes a mais de 1/3 do PIB, e que davam para pagar mais de 30 pontes. E deixou, além disso, um PIB per capita equivalente a 60% da média EU-15 e um potencial de crescimento económico anual da ordem dos 5%.

Quanto ao presente, mesmo que deixemos às gerações futuras um TGV, mais uma ponte, um aeroporto e mais umas quantas auto-estradas (para além de tudo o que já foi construído), já lhes tirámos, antes de começar a pagar as novas obras, um ano do seu rendimento futuro (que é o valor da dívida externa líquida).

Entretanto, entre a ponte que recebeu e as obras que quer deixar, a geração actual gastou o que produziu, mais a herança recebida e mais o ano de rendimento que já sacou sobre as gerações futuras. E com todos esses recursos consumidos, só progrediu seis pontos percentuais na convergência com a média EU-15 e deixa um potencial de crescimento inferior a 1% ao ano.

O problema não está nas obras, nem no seu mérito. Está no modo de vida de que elas fazem parte. Porque é insustentável e é profundamente injusto com os nossos filhos e netos. Sem poupança, há mais consumo temporário, mas não há desenvolvimento.

Ao passar da ética da poupança - cultivada pelas gerações anteriores - para a ética do endividamento, a geração actual melhorou o seu nível de consumo e o seu bem estar imediato, mas hipotecou o futuro das gerações seguintes. Era isto que, individualmente, cada um de nós faria pelos seus filhos? Então porque queremos todos, em conjunto, fazê-lo aos NOSSOS filhos?
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