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03 de Abril de 2007 às 13:59

Imputabilidade

A prestação de contas é um conceito que entre nós se mantém demasiado restrito aos domínios contabilísticos e empresariais, por um lado, e à obrigação de responder pelo cumprimento das leis, por outro.

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Os problemas ligados com a responsabilização pela própria elaboração das leis, pela sua aplicação e pela teia de influências destinada a inspirá-las estão, por seu turno, muito restringidos às questões formais da divisão de poderes e do julgamento periódico pelo eleitorado, insuficientes e apenas aplicáveis aos políticos. No que concerne ao poder indirecto, o soft power na terminologia inglesa, ou seja, a capacidade de actuar por sedução, afectando o comportamento de outros com vista a atingir objectivos próprios, só mais recentemente começou a estender-se-lhe a noção de "accountability", uma das mais fundamentais e difíceis de tratar na política moderna, ainda só difusamente percebida no debate político interno.

Uma das principais dificuldades do tema consiste em que a responsabilização tem de ganhar uma dimensão que vai para além do estrito cumprimento formal da lei, mas, para que isso aconteça, são necessárias mudanças legislativas, comportamentais e culturais difíceis de definir e de alcançar. Já no seu tempo Keynes argumentava que o que nos impede de criar as condições para um futuro mais promissor não é a escassez de boas ideias novas, mas a dificuldade em pôr de parte as passadas. No entanto, quer a internacionalização dos processos de decisão, quer as novas tecnologias da informação exigem novas ideias que se imponham e eliminem as que, não só já não funcionam, como impedem que outras mais eficazes surjam.

Um país com um percurso exemplar nesta matéria, como em várias outras que nos preocupam, é o Canadá, que introduziu recentemente alterações profundas nesta área, tendo adoptado uma lei e um plano de acção sobre a imputabilidade que merecem reflexão. Por si só, é eloquente a lista dos temas tratados. Esta começa pela reforma do financiamento dos partidos políticos, pela interdição de contribuições secretas a favor de candidados, pela regulamentação e supervisão dos conflitos de interesses e dos lobbies, e estabelece os necessários mecanismos para controlar os princípios definidos. Preocupa-se, em seguida, em garantir a transparência do processo orçamental, criando, no parlamento, o cargo de director do Orçamento, encarregado de apoiar o trabalho dos deputados e das comissões, fornecendo-lhes análises independentes sobre questões económicas e financeiras, ao mesmo tempo que exige ao Ministério das Finanças a actualização trimestral das suas previsões financeiras. Segue-se um capítulo sobre a nomeação de pessoas qualificadas para cargos públicos, criando, nomeadamente uma comissão especialmente encarregada de a supervisionar. O tema seguinte respeita ao saneamento da adjudicação de contratos públicos, visando a integridade de todos esses contratos e criando um "verificador" responsável por examinar em permanência as práticas de adjudicação adoptadas. Vêm depois capítulos sobre os métodos de publicidade e de sondagem da opinião pública e medidas de protecção aos funcionários que divulguem actos repreensíveis da administração. O último ponto respeita ao reforço da legislação sobre o acesso à informação, um domínio em que o Canadá era já um dos países com legislação e práticas mais avançadas.

Dir-se-á – e é verdade em relação a quase todos os temas – que estas matérias têm vindo a ser tratadas entre nós e/ou em legislação europeia, não havendo qualquer benefício em acumular leis sem sequer cuidar de aplicar as que existem. Há, contudo, campo de reflexão com respeito ao interesse em dar a este tema um tratamento coerente em torno de uma temática tão pouco enraizada na nossa cultura política que o próprio termo accountability não ganhou ainda um equivalente que tenha, no uso corrente, um significado equivalente. Além disso, esse tipo de reflexão teria de começar pela falha mais importante de grande parte do nosso sistema legislativo: a preocupação em verificar a eficácia das leis e em criar mecanismos para a acompanhar e para desencadear as alterações recomendáveis quando ela não é satisfatória.

A nível político, esta pode parecer uma tarefa ingrata: iria fazer emergir problemas que se prefere ignorar, com o risco adicional de ser o governo que procurava corrigi-los a ser penalizado pela sua existência, quer tenha ou não tido responsabilidades na sua criação; retirar-lhe-ia, além disso, margem de manobra a que os políticos se habituaram; finalmente, atendendo à cultura vigente, geraria enormes dificuldades de aplicação só resolúveis a prazo. Sucede, contudo, que, na sociedade actual, não só as possibilidades de esconder informação são cada vez mais restritas, como as insuficiências de transparência – mesmo quando não intencionais – se prestam a manipulações cujo custo político é muito mais elevado que o reconhecimento da realidade. Na verdade, a imputabilidade tem dois gumes: um incide sobre os políticos, o outro sobre aqueles que os criticam. A cultura que nos falta desenvolver é também a segunda, durante demasiado tempo resolvida por mecanismos de censura, explícita ou implícita, que, ao cairem, só deixam como recurso a transparência.

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