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Luigi Zingales - Professor de Finanças 07 de Outubro de 2008 às 13:00

Henry Paulson está errado

Quando uma empresa rentável está com um grande passivo, a solução não é o governo comprar os seus activos a preços exorbitantes. A solução é, em vez disso, a empresa pedir protecção ao abrigo do capítulo 11 da Lei de falências.

Nos termos do Capítulo 11, as empresas com um negócio sólido normalmente conseguem trocar a dívida por capital social. As acções antigas são anuladas e as dívidas pendentes são transformadas em participações no capital social da nova entidade, que continua a operar com uma nova estrutura de capital. Em alternativa, os credores podem acordar a redução do valor nominal da dívida em troca de alguns empréstimos garantidos. Assim sendo, por que não recorrer a este procedimento já estabelecido para solucionar os actuais problemas do sector financeiro?

A resposta óbvia é a de que não temos tempo; os procedimentos ao abrigo do Capítulo 11 são, por norma, morosos e complexos, e a actual crise atingiu um ponto em que não há tempo a perder. Mas estamos a viver um período pouco habitual e o governo tomou e está preparado para tomar mais medidas sem precedentes. Como se o resgate da grande seguradora AIG e a proibição de qualquer prática de "short selling" (venda curta através da qual o investidor vende títulos, que pode não ter em carteira, com o objectivo de os recomprar a um preço mais baixo, obtendo mais-valias) sobre os títulos financeiros não fosse suficiente, agora o secretário norte-americano do Tesouro, Henry Paulson, propôs a compra (com o dinheiro dos contribuintes) de activos em dificuldades no sector financeiro. Mas a que preço?

Se os bancos e as instituições financeiras estão com dificuldades em recapitalizar-se (ou seja, em emitir novas acções), é porque os investidores não estão certos quanto ao valor dos activos que têm em carteira e não querem estar a pagar mais do que a devida conta. Será que o governo fará melhor quando tiver de avaliar esses activos? Numa negociação entre responsáveis governamentais e um banqueiro que tem o seu prémio em risco, quem terá mais poder para determinar o preço? O plano Paulson prevê a criação de uma instituição de caridade que preste assistência social aos ricos – a expensas dos contribuintes.

Se as subvenções do governo tiverem dimensão suficiente, então será possível travar a crise. Mas, uma vez mais, a que preço? Para além do facto de isso custar milhares de milhões de dólares aos contribuintes, o plano Paulson viola o princípio capitalista fundamental de que quem quer que colha os ganhos também tem de suportar as perdas. Recorde-se que aquando da crise das caixas de poupança, ocorrida em finais da década de 80, o governo teve de socorrer essas instituições, porque os seus depósitos estavam segurados a nível federal. Mas, neste caso, o governo não tem de salvar os credores do Bear Sterns, da AIG ou de quaisquer outras instituições financeiras que venham a beneficiar do plano Paulson.

Como não temos tempo para aplicar os procedimentos do Capítulo 11 e não queremos salvar todos os credores, o mal menor é fazer aquilo que fazem os juízes nos processos de grandes falências que geram contencioso: impôr aos credores um plano de reestruturação, com parte da dívida perdoada em troca de acções ou de empréstimos garantidos.

Há um precedente para uma operação assim tão audaciosa. Durante a Grande Depressão, muitos contratos de dívida estavam indexados ao ouro. Assim, quando a convertibilidade do dólar em ouro foi suspensa, o valor da dívida aumentou, ameaçando a sobrevivência de muitas instituições. A Administração Roosevelt declarou a cláusula de indexação inválida, obrigando ao perdão da dívida.

Randall Koszner, meu colega e um dos actuais governadores da Fed, estudou este episódio e mostrou que não só os preços das acções, mas também o das obrigações, disparou depois de o Supremo Tribunal ter ratificado a decisão da Administração Roosevelt. Como é que é possível? Conforme os especialistas em finanças empresariais têm vindo a afirmar nos últimos 30 anos, deter demasiada dívida e poucos activos sai caro, pelo que a redução do valor facial da dívida pode, por vezes, beneficiar não só os accionistas, mas também os credores.

No entanto, apesar de a anulação ou o alívio da dívida beneficiar tanto os detentores de acções como de dívida, os credores não aceitam isso voluntariamente por duas razões. Em primeiro lugar, apesar de cada credor beneficiar individualmente, o certo é que beneficiará mais se forem antes os restantes credores a reduzir o valor facial da dívida que detêm. Assim, cada um deles fica à espera que os outros dêem o primeiro passo, o que atrasa as coisas. Em segundo lugar, do ponto de vista do credor, um resgate governamental é sempre preferível. Basta haver rumores de um resgate por parte do governo para os credores se sentirem menos incentivados a agir, o que acaba por tornar esse resgate ainda mais necessário.

Conforme aconteceu durante a Grande Depressão e em muitas situações de reestruturação de dívida, nas circunstâncias actuais faz sentido proceder a uma anulação parcial da dívida ou a uma troca de dívida por acções no sector financeiro. Trata-se de uma estratégia que já deu provas de sucesso e deixa de fora os contribuintes.

Forçar uma titularização da dívida ou parte do perdão da mesma não seria uma maior violação dos direitos de propriedade privada do que um resgate em força. No entanto, para os grandes intervenientes do sector financeiro, é bastante mais atractivo serem salvos pelos contribuintes.

De facto, para o sector financeiro, o atractivo da proposta de Paulson reside precisamente no facto de uma maioria ir em socorro de uma minoria. Uma vez que a maioria (os contribuintes) está dispersa, não consegue defender-se eficazmente no Congresso norte-americano, ao passo que o sector financeiro está bem representado politicamente. Em seis dos últimos treze anos, o secretário do Tesouro foi um antigo executivo da Goldman Sachs.

As decisões que o Congresso tem de tomar neste momento afectarão não só as perspectivas de curto prazo para a economia norte-americana, como também desenharão o tipo de capitalismo que teremos nos próximos 50 anos. Queremos viver num sistema em que os lucros são privados, mas as perdas são colectivizadas, em que o dinheiro dos contribuintes é utilizado para salvar empresas em processo de falência? Ou queremos viver num sistema em que as pessoas são responsabilizadas pelas suas decisões, em que o comportamento imprudente é penalizado e o comportamento prudente é recompensado?

Para quem quer que acredite no mercado livre, o risco mais sério da actual situação é que o interesse de uns quantos financeiros destrua as bases do próprio capitalismo. Chegou a hora de salvar o capitalismo dos capitalistas.

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