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13 de Dezembro de 2005 às 13:59

Haja esperança

Rafael não existe! É filho de pai e mãe portugueses, aqui estudou, cumpriu serviço militar, pagou impostos, teve cartão de eleitor e bilhete de identidade mas, de repente, deixou de ser português ou de ter qualquer outra nacionalidade.

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Parece um conto de ficção mas é um drama real. Que não dava para acreditar se não figurasse num extenso dossier de documentos oficiais, chegado às minhas mãos, após andar num jogo do empurra por quem deixa o Estado neste estado.

Pegue-se na resma de documentos que foram transitando, ao longo dos anos, da Procuradoria-Geral para a Conservatória dos Registos Centrais, destes para a Provedoria de Justiça e desta para o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e o resultado é uma experiência alucinante.

Mas fique comigo, nesta viagem, porque mesmo num país onde a burocracia e o deixa--andar juntam os trapinhos em núpcias cada vez mais frequentes, este é um caso paradigmático do autismo umbiguista em que mergulhamos.

Ora bem; Rafael nasceu em Moçambique, filho de mãe menor e solteira. Reza a documentação em tribunal que «para evitar represálias sociais e públicas – que na época se verificavam, nestas circunstâncias, naquele país», os avós maternos o perfilharam com o aval da mãe biológica.

Os incidentes que mancharam a independência daquela antiga colónia portuguesa empurraram a família para Lisboa, onde Rafael acabaria por ficar entregue à Casa Pia, por dificuldades financeiras dos avós e da mãe.

Até ali, tudo bem. A história do Rafael confundir-se-ia, anónima, com a de tantos outros jovens portugueses, que nas voltas da vida seguiram os pais no regresso à terra destes, após experiências profissionais no exterior.

Um dia, tendo-se casado já em Portugal, a mãe de Rafael decidiu «repor a verdade na filiação» e interpôs o necessário processo jurídico no Tribunal de Família e de Menores da Comarca de Cascais. Pedia ela que fosse anulado o assento de nascimento do rapaz, até ali constante, e o mesmo substituído por novo texto, factualmente correcto.

Estava-se em 1981. Tinha o menino seis anos.

Dez anos depois, a 21 de Maio de 1991, ainda era o rapaz menor, o tribunal emitiu um despacho anulando o assento original, sem fazer qualquer menção a novo registo nem dando desses factos notificação à família.

«Sendo a minha mãe pessoa de fracos recursos não procurou saber mais nada, pensando que o processo ou continuava ainda ou não teria tido nenhum desenlace, uma vez que nada lhe foi comunicado» – lê-se no processo que andou de mão em mão, gaveta em gaveta, carimbo em carimbo.

Quando os mancebos da sua idade foram chamados a cumprir serviço militar, Rafael vestiu a farda portuguesa. Quando se empregou como ajudante de cozinha, pagou impostos, como cidadão português. E, como tal, votou em várias eleições, até requerer a renovação do bilhete de identidade em 2002 e ficar a saber que afinal era um emigrante ilegal. Na terra estrangeira de Portugal.

Rafael pensou que se trataria de engano do Arquivo de Identificação. Até porque estes lhe retiveram (até hoje), apesar da nega, a taxa de renovação. Mas não havia volta a dar; perdera a nacionalidade e a identidade. Por outras palavras, legalmente não existia e só não podia ser deportado porque, não existindo, não só não era identificável como não tinha país para onde ser baldeado.

Apesar do apoio de uma jurista que lhe deu a mão a título gracioso, por questões humanitárias, Rafael perdeu primeiro uma casa de habitação social que lhe fora atribuída em Cascais, por os bancos recusarem empréstimo a indocumentados.

Depois perdeu mesmo a possibilidade de contestar o caso nas barras dos tribunais, em Portugal, exactamente por estes exigirem a prova de identidade que lhe fora subtraída. Tudo porque o Tribunal de Cascais demorou 10 anos a notificar o arquivo de Identificação sobre o cancelamento do registo original de nascimento.

Se o tivesse feito em tempo útil (sendo, na altura, ainda menor), Rafael era legalmente intitulado a pedir registo de identidade portuguesa com base unicamente nas declarações ajuramentadas da mãe e de três testemunhas.

E dali, já o disse, não havia volta a dar. Os sucessivos despachos das mais diversas instâncias judiciosas portuguesas dariam para escrever o guião de um filme felliniano.

A Conservatória dos Registos Centrais chuta a bola para o SEF, respondendo que Rafael deverá abrir ali um processo de naturalização enquanto estes devolvem o esférico argumentando não o poder fazer por Rafael ser um «indocumentado» sem filiação.

Aqui entroncamos noutra página notável da história contemporânea da tugolândia, versado há uns meses nesta coluna. Lembram-se do «Arrastão de Carcavelos».

O tal que afinal não foi um «arrastão», porque afinal só houve uma meia-dúzia de queixosos e porque afinal aquelas dezenas de jovens a apanhar as malas, sacos e pertences dos outros, e a agredir quem lhes aparecia pela frente, estavam (mais uma vez, afinal) a fazer apenas «educação física» na praia....

Tendo sido, ou não, uma realidade virtual, o arrastão de Carcavelos teve por efeito «secundário», nova lufada lubrificadora da máquina de legalização dos estrangeiros neste país e, por arrasto, imagine-se, do pobre Rafael.

Ao fim de 20 anos de interposição do processo inicial, por sua mãe, Rafael foi naturalizado português, nunca tendo tido outra qualquer nacionalidade, e, graças a três testemunhas, voltou a existir, filho de quem o deu à luz.

Haja esperança!

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