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Feminismo e representação

Quando escrevo recorro por vezes à Wikipedia, a enciclopédia da Internet, não tanto para garantir rigor científico ao que afirmo, mas antes para conhecer o chamado «estado da arte» sobre determinados assuntos.

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Ou seja, para ter uma ideia, ainda que por vezes bastante subjectiva, do como estamos sobre isto ou aquilo. Para quem não sabe a Wikipedia é uma enciclopédia livre e feita por todos, onde o conteúdo e validação resulta de múltiplos contributos, pois caso se considere que uma determinada entrada tem erros ou omissões cada utilizador pode alterar e melhorar. Trata-se de um conhecimento que realmente emerge de baixo para cima. Os temas que suscitam mais curiosidade são por isso os de maior profundidade e rigor, enquanto os que interessam a poucos têm geralmente pobres conteúdos ou reflectem visões tendenciosas.

A entrada sobre o feminismo em Portugal (pt.wikipedia.org/wiki/FeminismoemPortugal) tem quatro linhas. Refere a realização do Congresso Feminista e de Educação nos anos 20 e cita o nome das escritoras que ficaram conhecidas pelas Três Marias. E é tudo. A título de curiosidade as quatro singelas linhas foram reeditadas o mês passado (por um homem). Até essa data tinha só as duas linhas sobre o referido Congresso.

Que o feminismo não interessa às portuguesas, nem já agora aos portugueses, é uma realidade documentada. Criou-se, e fez consenso, a ideia de que o feminismo foi um movimento radical do passado, do qual a queima dos soutiens se mantém como a imagem predilecta no bastante boçal argumentário do machismo. Ora o feminismo foi e é um movimento global de emancipação das mulheres, sendo naturalmente mais intelectualizado e radical nas sociedades desenvolvidas, em particular nos Estados Unidos, e mais ligado à conquista de direitos básicos de dignidade e liberdade nos países do terceiro mundo. No fundo o feminismo é por um lado a recusa da pretensa superioridade do homem sobre a mulher, em que assentam religiões e legislação, e por outro a procura de modelos de afirmação social e cultural do feminino.

Apesar da grande mudança de mentalidades operada nos últimos trinta anos, o tema da condição das mulheres portuguesas continua pois a ser menosprezado entre nós. Limitando-se praticamente à questão do aborto, que entretanto se deixou cair no campo do moralismo quando na verdade se trata de uma matéria de saúde pública. Nem o considerável aumento da escolaridade, hoje superior ao campo masculino, parece ser capaz de gerar uma nova atitude. Por isso são as ideias claramente machistas que continuam a dominar o debate. Diz-se por exemplo que as mulheres não precisam do feminismo para conquistar o seu lugar na sociedade. É certo. Mas os nomes por vezes são mais do que simbólicos. Também não é necessária a democracia para se ser feliz ou usufruir de uma vida livre. Mas que ajuda, lá isso ajuda e muito.

De qualquer modo, com ou sem a malfadada designação a sociedade não pode evoluir se depreciar metade da sua população. Perde-se em energia e talento. Perde-se em conflitos obsoletos, injustiças e discriminações absurdas. Perde-se em civilização e modernidade. A valorização das mulheres numa sociedade não é uma questão de costumes, é matéria de inteligência. E já que o atavismo social não favorece a sua afirmação é preciso agir. Daí que os países mais civilizados tenham introduzido mecanismos que contrariem a dominação masculina. O que por cá se traduz na intermitente questão das quotas no sistema político.

A direita, que ainda para mais se imagina liberal, é contra. Não aceita que as listas partidárias tenham obrigatoriamente uma determinada percentagem de mulheres. Consideram que o mérito deve prevalecer, independentemente do sexo, mas esquecem que o mérito sem oportunidade pura e simplesmente não vê a luz do dia. Por outro lado há que reconhecer que a ideia de quota não é feliz. Já que pressupõe favorecimento e até discriminação, que por se chamar positiva não deixa de o ser. Por isso parece-me que a questão tem sido mal colocada pelos partidos de esquerda. Na verdade não se devia falar de quotas mas sim de representatividade.

Se a nossa democracia representativa funcionasse somente com base no mérito, então provavelmente não existiriam deputados de Trás-os-Montes, do Alentejo ou das zonas mais desfavorecidas do país. A Assembleia da República teria uma larga maioria de deputados de Lisboa e alguns do Porto. É precisamente para evitar a falta de representatividade do todo nacional que se divide o país em círculos eleitorais. Vila Real por exemplo tem 5 deputados que representam sensivelmente a mesma percentagem de habitantes daquela região face à totalidade do país. Ou seja, garante-se a «paridade». Do mesmo modo no caso das mulheres trata-se simplesmente de garantir a sua representatividade num universo político que tende a ser dominado pelo masculino, tal como o país tende a ser dominado pela capital.

Um maior número de mulheres nas listas partidárias não tem por isso nada a ver com quotas de favorecimento sexista e tudo a ver com uma questão de representação democrática.

Uma maior participação feminina na vida política só pode aliás beneficiar a própria democracia. Não tanto por quaisquer características acrescidas de bondade e sensatez que possam ter, mas precisamente porque tenderão a representar questões importantes para o conjunto da sociedade que hoje se acham desvalorizadas pelo predomínio do masculino. Uma maior presença do feminino na política representa, por si só, uma sociedade mais justa e equilibrada. E o feminismo mais não é, e não é pouco, do que a expressão dessa tendência civilizadora.

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