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Opinião
28 de Outubro de 2011 às 12:01

Escavacando

(Onde o autor - finalmente convencido pela sua extremosa mulher de que o indivíduo que, há uns dias, à saída de um evento na Ordem do Economistas, pronunciou umas frases fulminantes sobre a proposta de Orçamento do Estado para 2012, no tom displicente de quem vem cá fora fumar um cigarro, não era um sósia de Cavaco Silva mas o Presidente da República "himself" - decide vir a terreiro aconselhar a D. Maria a não deixar o marido sozinho, pois ele pode disparatar).

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Uma coisa eu sei de ciência certa, e essa é que o fraseado de Cavaco Silva que eu refiro em epígrafe deixou rigorosamente toda a gente em total perplexidade, como ficou bem revelado por tudo o que foi notícia ou comentário, quer aplaudindo quer criticando. Partindo do princípio de que o unânime boquiabertismo do País não foi um extraordinário fenómeno de basbaques, então é o comportamento presidencial que sai da coerência dos hábitos e dos princípios sempre enunciados e exibidos em toda uma longa vida política.

Para mim, trata-se de muito mais do que uma divergência de opinião ou do desencanto de votante desiludido, que isso não tem qualquer importância, nem sequer para mim próprio. É que a palavra do Presidente vai sempre muito para além do mero parecer diletante e, neste tempo e circunstâncias e daquele modo, tratou-se de acção incongruente, errada, displicente, e sem ponderação de consequências colaterais. E como isto afirmo, eis-me a apresentar os argumentos fundamentadores:

1 - O enquadramento circunstancial é o da maior crise financeira desde o final da 1.ª República e do maior período de incerteza quanto ao futuro desde o PREC de 1975 e os seus preliminares de guerra civil, e, então, as palavras do supremo magistrado da Nação têm que vir no sentido de conseguir o máximo de harmonia e coesão nacionais, inspirando e animando os cidadãos para os difíceis tempos que estão aí, augurando um futuro comum em que todos podem desempenhar um papel positivo, mesmo com sangue, suor e lágrimas. Não se esperava que Cavaco fosse um Roosevelt, inspirado e inspirador, proferindo alguma frase de grande recorte anímico, tipo " Não há nada de que ter medo, senão do próprio medo", mas, ao contrário, acrescentar dúvidas e reservas aos cidadãos em crise é o contrário da mobilização que se esperaria de um chefe de Estado, e não de alguém que, aparentemente, apenas deseja sair ileso e por cima.

1b - Apontar-me-ão, contradizendo pelo menos em parte, que Cavaco pretenderia ascender acima do Governo e dos partidos, numa atitude de reserva nacional para possíveis crises sociais e até de ordem pública. A isso contraponho que se era esse o razoável desiderato, então o modo de o fazer seria com outras palavras que não as de duríssima crítica sem aspecto redentor, um verdadeiro "tiro no porta-aviões", como classificou um respeitado dirigente do BE.

Outros, dotados de subtileza que ultrapassa a minha camionete, viram uma mensagem subliminar de crítica pelo facto de o PS ter sido indesejavelmente posto de lado nesta questão orçamental. Mas isso, que seria altamente positivo e, quanto a mim, mais do que necessário em vista de mostrar frente comum ao exterior, pura e simplesmente não está lá, nas palavras.

2 - Por muito que Cavaco invoque o nome de Teixeira Ribeiro em vão, o corte de subsídios aos funcionários públicos não é um imposto. Para quem tanto se reclama do rigor, como se pode confundir receber menos com pagar mais? O efeito pode ser o mesmo para o visado, mas os conceitos jurídico-económicos subjacentes são muito diferentes e até com repercussões opostas para efeitos de "memorandum" da troika, onde se impõe uma proporção entre cortes de despesa e acréscimos de receitas. E quereria Cavaco a insanidade de impor cortes de subsídios também no sector privado, numa bacoca e literal obediência ao princípio da igualdade? Livra!

3 - Cavaco quebrou aquilo a que adora chamar "solidariedade institucional" e a unidade dos principais actores políticos nacionais quanto aos objectivos de consolidação orçamental e limites quanto ao défice, nos termos do acordo com a EU. Ora, essa é a grande imagem positiva que o País dá lá fora, pois o que é facto é que, mesmo com a determinação do Governo, os objectivos para 2011 falharam, estando apenas encobertos com um truque contabilístico. Desaparecida a unidade, cheios de "buracos", como ficamos, vistos do exterior? Mais próximos da Irlanda ou da Grécia?

4 - Ao acenar com "iniquidades" e "sacrifícios insuportáveis", Cavaco fomentou a desagregação e incendiou o País, como se fosse um líder sindical extremista, deixando Carvalho da Silva numa frustrada obscuridade. Um manifestante de rua, injustiçado e sacrificado, que no futuro parta umas montras em plena agitação social, numa possível fotografia grega, tem todo o direito de sentir o apoio moral do Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, o proclamante.

Um amigo caro tirou-me, porém, as perplexidades. Não foi o mesmo homem que em visita oficial aos Açores exclamou "Ontem eu reparava no sorriso das vacas, estavam satisfeitíssimas olhando o pasto que começava a ficar verdejante!"?


Advogado, autor de "Ganhar em Bolsa" (ed. D. Quixote), "Bolsa para Iniciados" e "Crónicas Politicamente Incorrectas" (ed. Presença). fbmatos1943@gmail.com



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