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24 de Outubro de 2006 às 13:59

Ensinar em Timor: Março a Maio de 2006

Desde que regressei, muita gente me tem pedido para escrever sobre Timor. As histórias são tão vivas, dizem-me, as imagens tão nítidas que davam um bom livro com certeza.

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Se fosse necessário preencher pouco a pouco o espaço entre o dia e a noite levar-se-ia nisso uma eternidade. Se fosse necessário fazer o mesmo entre o dia em que cheguei a Timor e aquele em que me vim embora, levar-se-ia um momento ou uma eternidade. A eternidade e o momento marcam a minha passagem de pouco mais de dois meses por Timor num acordo entre o ISCTE e a FUP para dar aulas na universidade. Ainda hoje vejo aquela parte muito bonita do mundo, o mar semeado por uma infinidade de ilhas de areia branca, água azul turquesa, florestas exuberantes, uma viagem que nós não queremos que acabe nunca e por isso suspiramos fundo e encostamos ainda mais a cabeça à janela do avião. Que ninguém nos fale, quem dera que aquele momento fosse uma eternidade. Talvez por isso, porque acabamos de vir de um sonho,  Dili nos pareça ainda mais chocante. Quando damos a curva de onde se avista o Cristo Rei já podemos vislumbrar a nuvem de pó permanentemente instalada sobre a cidade. À minha chegada, um besouro de asas invulgarmente densas pousou ao de leve no meu coração.

Para as aulas eu ia todos os dias com a minha sombrinha que os raios de sol atravessavam, às duas da tarde. Sessenta e seis alunos, tudo gente feita para se perder no interior de uma pintura. O Augusto, o David, o Délcio e alguns outros brincavam com uma moeda que conseguiam fazer segurar dentro do ouvido, mas dos seus olhos vinha toda a atenção. A primeira medida que tomámos foi a arrumação da sala. Cada cadeira para seu lado, disse-lhes, era demasiado input visual e fazia dores de cabeça. Riram-se, eles nunca tinham dores de cabeça. Mas aceitaram o  regulamento: manter um corredor ao meio da sala e as cadeiras bem alinhadas, do princípio ao fim. Afinal de contas nós estávamos a estudar gestão de empresas e o lay out, está provado, resolve muitos problemas na organização. Um dia, já as aulas iam avançadas, a Adelina, uma das alunas mais atentas, disse-me que não percebia, o que era uma organização? Tudo se passou depois da explicação sobre o "taylorismo" ou a organização científica do trabalho. Para minha surpresa nesse dia, todos, através dos seus sorrisos de satisfação e trocas de ideias uns com os outros, pareciam conhecer o Taylor. "De onde?", com desconfiança perguntei. "Do secundário". Seria possível? A dúvida não me deixou e no dia seguinte confirmei: "Qual era a profissão do Taylor? O que é que ele fazia?". Com um ar de grande admiração responderam-me: "Calças e casacos, às vezes saias também".

A ausência de referências mentais comuns é o maior desafio que se pode colocar a um professor em Timor como ficou desde logo provado, na primeira semana, quando falámos de auto-estradas. "Timor tem auto-estrada, professora". Sim, onde? "Em Baucau, e vamos lá neste fim de semana". Fomos. Era uma excursão para assistirmos a uma conferência promovida por uma organização não governamental sobre: "o bicho da seda". "Tem auto-estrada, vê professora!", insistiu o Adelino. De facto, à nossa frente estendiam-se face ao mar, por entre a vegetação, os arrozais e o céu, uma estrada onde se podiam cruzar dois automóveis e, ocasionalmente, alguns búfalos de água. Por essa altura, em Dili, já eu ia todos os dias até ao mar deixando-me invadir por uma leve mas insidiosa sensação que sempre invade os ocidentais no oriente e que eu já conhecia: um vício, um ópio, um perfume, um dizer baixinho "não me quero ir embora, não me quero ir embora daqui...". No mar, junto ao farol  eu vi todos os matizes do poente: duas massas de nuvens, uma de cada lado da grande bola de fogo que se afundava no horizonte, por detrás da ilha de Alor, como uma grande ave, com as asas de cores violentas abertas.

"Tem medo professora",  disse a Esperança trocando risos nervosos com os poucos colegas que ainda restavam, os que não tinham fugido para as montanhas deixando a cidade deserta, entregue a uns poucos estrangeiros olhando incrédulos as camionetas carregadas de gente, frigoríficos, colchões... "Tem medo, compra um cão", mas a minha voz soava a falso, tão falso quanto a falsidão pode ser. Estávamos deprimidos e até um pouco assustados com a sensação de que algo era suposto acontecer, mas não estava a acontecer. Como se a cidade e as ruas fossem um palco sem actores ou sem acção.  Faltavam ainda dois dias. Depois, no meio do tiroteio, das casas a arder, do intenso ruído dos helicópteros australianos, à luz dos very lights, ainda assim eu me aproximei do bambu em frente da nossa casa, um bambu que todos os dias crescia quinze centímetros como confirmei com uma fita cor de rosa atada numa ponta, e me encostei ao seu tronco imóvel e rugoso, ciente de que a árvore me revelaria um segredo ou uma resposta sábia e dizendo baixinho "não me quero ir embora daqui". As paredes do meu quarto onde, meses antes, eu entrara decepcionada, olharam-me cheias de espanto.

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