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20 de Julho de 2004 às 13:59

Elogio da descontinuidade

'As heresias que devemos temer são as que podem confundir-se com a ortodoxia.' ... a descentralização dos ministérios e o regresso do choque fiscal, em versão populista, já começaram a mostrar o que nos espera.

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"As heresias que devemos temer são as que podem confundir-se com a ortodoxia." Jorge Luís Borges, Os Teólogos

Alguns aspectos da turbulência política a que temos vindo a assistir lembram irresistivelmente o PREC, agora engravatado, constitucional ... e de sinal contrário. Para isso contribuiu, em primeiro lugar, o desabrimento das críticas aos adversários políticos, o uso e abuso da justificação da «herança», a profusão de ideias e «desafios» e a qualidade dos resultados.

Seria, de facto, necessário um extraordinário grau de pessimismo para ter previsto, quando o governo Durão Barroso tomou posse, quais seriam, dois anos volvidos, os resultados de uma tão forte retórica reformista, professada por quem tanto criticara a incapacidade de decisão do anterior Primeiro-Ministro. A justiça, a educação e investigação científica, o ambiente, as obras públicas, a administração e ordenamento do território são, todas elas, áreas caracterizadas por significativos recuos, nalguns casos a raiar o inconcebível.

Quanto às matérias a que foi, de facto, dada prioridade - as finanças públicas, a legislação laboral e a saúde - os resultados estão entre o parco e o incerto. Em matéria de finanças públicas, a consolidação orçamental não está feita e, o que é mais grave, os procedimentos que favorecem a instabilidade não foram alterados: nem o processo orçamental ou o financiamento regional e local foram reformados, nem as contas públicas se tornaram mais fiáveis, abrangentes e transparentes. Para complicar as coisas, desmoronou-se a gestão do PEC assente em objectivos rígidos e conceitos fluidos, que fora erigida em sustentáculo da política interna, embora já em 2002 fosse evidente que tal interpretação estava condenada.

No que respeita à saúde, a vantagem dos hospitais SA ainda só convenceu os convertidos, especialmente quando é posta em confronto com modelos de gestão moderna, como o anteriormente introduzido no Hospital da Feira. A falta de transparência financeira e o repúdio generalizado dos profissionais do sector são motivo de preocupação, permitindo pensar que, mais do que a eliminação das rendas em que o sector é pródigo, pode apenas estar em causa a sua redistribuição.

Em matéria de legislação laboral, para além dos resultados parcos - ou mesmo nulos, como foi o caso da formação profissional -, talvez o mais preocupante seja o facto de nada se ter alterado no que respeita às matérias em discussão. Ao longo das décadas de 80 / 90, operou-se, nos países desenvolvidos, uma autêntica revolução em matéria de organização do trabalho, que a globalização acelerou nos anos mais recentes. Os seus aspectos mais salientes foram o gradual abandono dos processos de produção em massa e da organização burocrática e fortemente hierarquizada do trabalho. Em sua substituição desenvolveram-se formas de organização flexíveis, a delegação de responsabilidades, o trabalho em equipa, a adaptabilidade dos trabalhadores a novas tarefas e especializações, etc. Todos os países se adaptaram, embora de formas muito diferentes, tendo os modelos de sucesso variado entre o americano e o do norte da Europa, nos seus antípodas. Em Portugal, alguns sectores e empresas ajustaram-se, mas as instituições e a maioria dos agentes, não.

As mudanças que já ocorreram na economia exigem a flexibilização das relações de trabalho, sem a qual a competitividade ficará irremediavelmente afectada e, com ela, os níveis de emprego e salários. Até aqui, porém, fomos testemunhas da incapacidade de focar o debate nas questões relevantes. A prática tem mostrado que a flexibilidade, quando inserida num quadro de relações de trabalho inspirador de confiança, é aceite pelos trabalhadores. O que falta é criar essa confiança, que não resultará certamente da ameaça de perda de direitos num quadro gerador de instabilidade económica e social.

Uma conclusão a tirar é a de que a reforma das leis laborais tem que ir a par com a da própria economia e das estruturas e capacidades empresariais, além da sempre referida - e indispensável - qualificação dos trabalhadores. A outra conclusão é a de que a economia ela própria foi um dos maiores falhanços do governo Durão Barroso que, nessa matéria, se constituíu herdeiro directo de todos os que o precederam, em particular desde que o desígnio de integração no mercado único europeu e na moeda única foi visto como uma simples questão macroeconómica e de conjuntura, tendo como principal aliciante, a nível das finanças públicas e privadas, a absorção de fundos europeus.

Tudo isto também mostra que não é da continuidade das políticas que pode esperar-se o seu êxito. A sucessão de acontecimentos desde as eleições europeias não augura, contudo, nada de bom para um sistema político que se especializou em viver num mundo virtual que, tudo indica, irá tornar-se cada vez mais delirante, sobretudo quando se esconde sob a capa da ortodoxia e das boas intenções. Em tão poucos dias, a descentralização dos ministérios e o regresso do choque fiscal, em versão populista, já começaram a mostrar o que nos espera.

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