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Opinião
21 de Junho de 2006 às 13:59

É realmente importante o conflito israelo-árabe?

O tema é dos mais apaixonantes. Não tanto o conflito em si mesmo, mas a importância que lhe é dada. É que são em geral os mesmos que lhes dão importância que não percebem até que ponto a importância que lhe dão nega todos os seus pressupostos.

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Qual é o pano de fundo? Somos muito «científicos». Primeira premissa seguida por gente que em geral nada sabe de ciência. Em consequência (?) temos de ter uma análise funcional das coisas. Em consequência ainda (poria aqui um ponto de interrogação ainda maior se pudesse, de espanto e de perplexidade) o que interessa são os interesses económicos. Há ainda quem dê mais um passo e reduza estes ao petróleo, a teorias da conspiração e assim por diante.

Qualquer tonto que opine sobre a política internacional tem sempre uma coisa na boca: o petróleo. Pouco higiénico estomatologicamente, e produto demasiado inflamável para a sua capacidade de combustão sináptica.

Ora bem, vejamos com cabeça fria o que é este conflito israelo-árabe. Uma terra miserável, sem petróleo, com uma quantidade de população completamente irrelevante. Nem sob o ponto de vista agrícola é rica, não fora o forte investimento israelita na matéria. Realmente, que importância tem uma terreola como esta? Os cultores das petrolíferas teorias onde encontram eles justificação para a importância que eles mesmos dão a este conflito?

Pode-se dizer que há motivos objectivos que lhe dão importância. A expulsão de palestinianos, espalhados sobretudo pela Jordânia, em parte Israel, uma situação explosiva portanto. No entanto, outras situações não menos explosivas existem no mundo que não nos movem tanto. Os curdos estão espalhados não por duas áreas, mas por quatro (Turquia, Irão, Síria, Iraque). São muitos mais que os palestinianos, e de certeza muitos mais que os judeus e podem pôr em causa a integridade territorial de quatro países em muitos aspectos mais relevantes que Israel.

Ah, mas Israel é muito poderoso e move muitos interesses, contra-argumenta-se. Mas se é assim então menos importância ainda deveria ter o conflito. Se de um lado está um povo irrelevante económica e demograficamente de outro lado um povo poderoso ninguém deveria falar no assunto. É o que se passa com o povo curdo, muito mais importante que o palestiniano, mas esmagado por quatro potências que o subjugam.

Todos os critérios dos «objectivos», «científicos» e funcionais valem coisa nenhuma para perceber a importância deste conflito. Por uma razão muito simples. É o que o fundamento é simbólico. Simbólico religiosamente e simbólico pelo que incorpora de frustração do mundo muçulmano, sobretudo árabo-muçulmano. Em perda desde há mais de sete séculos, sem ter dado nenhum contributo relevante para a civilização desde essa altura, o conflito em presença é uma ferida simbólica, narcísica, fundamental para este mundo.

Vejamos os dois lados da questão. Os israelitas têm alguma razão. Em primeiro lugar têm uma ideia que só vagamente merecerá condenação, a de querem existir como país. Convenhamos por outro lado que é francamente desconfortável viver numa cidade e ter os subúrbios repletos de fundamentalistas islâmicos. Nós europeus, que temos apenas um antegosto desta desagradável experiência, temos dificuldade em perceber quão incomodativa pode ser. Finalmente vivem num Estado rodeado de inimigos, apenas oficialmente pacificado com os egípcios e com um único aliado seguro próximo, a Turquia, ela mesma odiada ou desprezada pelos vizinhos. Tendo em conta que isto tudo se processa num pano de fundo originado em parte pelo holocausto, temos de aceitar que os israelitas têm alguma razão.

Mas os israelitas perdem grande parte da sua razão. Sentiram-se durante décadas com um cheque em branco moral da Europa e dos Estados Unidos por causa do holocausto. Sentiram-se por isso autorizados a tudo. Abusaram, portanto. A sua política tem hoje em dia contornos criminosos que os fazem assimilar em muitas mentes (com maior ou menor honestidade intelectual) aos nazis. É certo que a vítima tende a tornar-se semelhante ao carrasco. É assim com os adultos pedófilos, que geralmente foram abusados em crianças. Mas é apressado comparar realidades históricas bem diversas na sua natureza e nas suas origens. Por outro lado, temos de ter em conta a humilhação de um povo, o palestiniano, que se encontra em terra de ninguém desde há décadas, vivendo uma vida de empréstimo ou submissão. Desesperados com razão, fazem muita coisa perdendo-a completamente.

Em todos os conflitos ambas as partes têm alguma razão e são tão piores quanto ambas as partes acumulam razões. Ambos estão cheios de razão até ao tutano. Depois do assassinato de César Roma estava numa situação desesperada sob o ponto de vista jurídico. Ou os assassinos eram exaltados como heróis, o que irritaria os partidários de César, ou eram condenados como criminosos, o que revoltaria os republicanos. Cícero lembrou-se de um estranho instituto grego, a amnistia. Reconhece-se que houve crime, mas não se pune. A amnistia é a solução adequada para os casos em que ambos os lados estão cheios de razão.

O problema é que esta amnistia é dificultada pelos interessados. Pelos Estados Unidos que são notoriamente parciais a favor de Israel. E pela Europa que, não se unindo nem assumindo a força que pode ter, não pode impor com vigor a ordem no seu quintal. A borbulha deste conflito surge com a deslocação do poder para lá do Atlântico. Como não têm quem os ponha na ordem e lhes dê um valente raspanete, vão-se aproveitando uns do apoio dos americanos e outros do apoio mais ou menos romântico dos europeus e dos seus vizinhos árabes.

De borbulha teme-se no fundo que passe a tumor. Mais uma razão para a sua importância.

Mas o cenário é ainda mais complexo. À pergunta se é importante este conflito temos de dar mais um nível de resposta. É importante porque dá importância ao vulgo. Todo o tonto se sente importante por ter opinião sobre um assunto a que se dá importância. Vemos isso com minorias subnutridas intelectualmente dos subúrbios europeus, ou com tontos propagandistas de boas intenções. Tornou-se mais um dos pontos de refúgio de ineptidões intelectuais. Qualquer destituído pode sentir-se importante por opinar sobre o tema. Opina e sente-se legitimado. Ignora o que tenha sido o império turco, nada leu sobre a ascensão aos céus de Maomé, tem uma vaga ideia do que significa a palavra «cruzadas», o Muro das Lamentações parece-lhe nome de filme, a importância simbólica, histórica e religiosa da Paixão passa-lhe ao lado. Brande a declaração Balfour quando se pretende sofisticado mas agradece que não lhe perguntem o que seja.

É finalmente importante porque permite manipulações de toda a espécie. O capital de simpatia que move em relação aos muçulmanos (árabes, no caso) é utilizado para os que querem a Turquia na União Europeia. Esquecendo que os turcos e árabes estão longe de ser os maiores amigos do mundo, e que uma das razões que leva a Turquia a querer entrar é exactamente essa inimizade. Manipula-se mais uma vez a ignorância que tem a Europa das fundamentais destrinças do Oriente.

É importante? Em grande medida porque são pouco importantes as pessoas que dele se ocupam. E nessa ficção julgam ganhar relevância. Mas igualmente importante porque destrói o primado do pseudo-pragmatismo nos seus fundamentos. O simbólico, expulso do espaço público, entra pela janela das televisões e a todo o momento. Não fora Salomão, depois Cristo e finalmente Maomé, nada naquela terra árida deveria ter interesse. Uma reflexão para os que pensam deter o monopólio da verdade sob a forma dos relativismos de feira.

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