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Opinião
04 de Janeiro de 2005 às 13:59

Da «Décima» à terça

Os sistemas fiscais são reflexo das estruturas sócio-económicas sobre que incidem e modelam, evoluindo em função do grau de desenvolvimento dessas mesmas estruturas.

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Se por um desígnio em que o Natal é fértil, El- Rei D. João IV tivesse voltado a este seu reino (hoje mais reduzido à condição de «condado» e de «quinta» televisiva, do que de país moderno e próspero), por certo mui preocupado ficaria com o estado em que o encontraria, ele que conheceu bem as guerras contra o domínio filipino. Surpreendido se quedaria, igualmente, com o percurso decorrido desde a imposição da sua décima militar (*), bem como com o pesado «fardo fiscal» que «faz fraca a forte gente», pelo menos no dizer de certos «nobres da Corte».

Realmente, muito se caminhou desde essa época tributária até hoje: vários dos seus princípios continuam - apesar do tempo - actuais; contudo, as concepções, as práticas, os montantes e as aplicações sofreram uma profunda revolução em todos os países. As razões para a diversidade, quer de «modelos», quer de figuras tributárias, são várias e conhecidas: assim, para além das influências de ordem histórica e política, necessário se torna ter presente que os sistemas fiscais são reflexo das estruturas sócio-económicas sobre que incidem e modelam, evoluindo em função do grau de desenvolvimento dessas mesmas estruturas.

Pelo que, olhando numa perspectiva histórica, assiste-se a um movimento estrutural em que a respectiva base de tributação passa, sucessiva e progressivamente, da incidência sobre a agricultura, para o sector do comércio externo, seguidamente sobre o consumo e, por fim, sobre o rendimento individual e das empresas, paralelamente à importância das contribuições específicas para coberturas sociais (Hinrichs).

Em Portugal, e apesar da letargia (política, económica e social) que caracterizou os cinquenta anos de ditadura, o sistema fiscal também se foi modificando ao sabor, ou sob pressão, de factores de diversa índole: salienta-se nesse período, a reforma de 1929 (preparada pelo próprio Salazar na comissão de reforma de 1927, e inserida nos objectivos de ortodoxia financeira que caracterizaram a política do governo saído do 28 de Maio); e a reforma fiscal de 1958 / 66 e medidas posteriores, ditadas pelas necessidades do desenvolvimento industrial, pela participação no comércio internacional, e pela despesas acrescidas com a guerra em África.

Mais recentemente, e no pós-1974, as alterações mais profundas e estruturantes reportam-se às reformas fiscais do período 1984-88, quer na tributação indirecta (IVA), quer na tributação do rendimento (imposto único sobre pessoas singulares e colectivas), alterações que ainda hoje marcam o sistema de regras fiscais que temos.

Se analisarmos, de um ponto de vista quantitativo e global, o desempenho do nosso sistema fiscal através de um indicador (sintético) como é o nível de fiscalidade - entendido como a relação percentual entre o total dos impostos cobrados a todos os níveis de Governo e uma grandeza que dê a medida da capacidade económica / riqueza de um país (por ex., o PIB) -, verificamos que, face à décima de 1641, o actual nível de «punção fiscal» ronda os 34% (a «terça»), dos quais 25% são impostos em sentido estrito e 9% são contribuições sociais obrigatórias, tendo o mesmo duplicado nos últimos 35 anos (em 1965 situava-se nos 16%).

Comparando, porém, com as práticas de países com os quais «queremos estar próximos», verifica-se que o peso global da nossa fiscalidade não se apresenta, numa primeira análise, como «extraordinário» ou «excessivo», atento que a média (simples) dos países da UE ronda os 41%. Somos até o país que, logo a seguir à Irlanda, apresenta menor rácio fiscal, inferior, por exemplo, ao da Espanha ou da Grécia.

Sendo assim - interrogar-se-ia o nosso Soberano, preocupado com o devir dos seus súbditos - o que justifica um tão grande desconforto e insatisfação com o sistema fiscal que têm (temos)?

Conhecedor da sabedoria antiga, para quem «tributar e agradar não são coisas terrenas», regressaria ao Além, prometendo voltar com algumas explicações para tão surpreendente «fenómeno».

Nós por cá, se assim nos permitir a paciência dos leitores (cujas reacções e comentários enviados até agora muito agradecemos), tentaremos em próximas crónicas dar voz e «letra» a tão ilustre visitante, no encontrar de algumas das limitações, mas também das (eventuais) potencialidades, do sistema tributário português actual.

(*) Imposto criado por Alvará de 5 de Setembro de 1641, com o objectivo de obter receitas para fazer face às despesas com a Guerra da Restauração, e que consistia numa contribuição geral, à taxa de 10%, sobre o valor de «qualquer fazenda de que fosse senhor», nomeadamente, sobre o rendimento de «prédios, de capitais, de ofícios e rendas» (Sousa Franco), dele não estando isento o próprio Rei.

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